Paris não aparece uma única vez no clássico de 1984 de Wim Wenders. É apenas o nome de uma hipótese de perfeição, um arquétipo de felicidade, um sonho do que nunca sequer poderia ter sido, como se nascêssemos com sentimentos fora do alcance das nossas possibilidades. Mas Paris é também o nome de uma pequena localidade no Texas – que Wenders retrata como desértica e estéril – onde os pais de Travis se conheceram e ele gosta de pensar que a vida, a vida dele, eventualmente começou. Todavia, nem essa Paris, a do Texas, é cenário do filme; é apenas entrevista na foto do baldio que Travis comprou e tenta remotamente alcançar: um homem fracassado que quer voltar ao ponto de partida, como quem procura perceber em que momento do caminho se perdeu para poder, enfim, recomeçar. Todos conhecemos o sentimento. Alguns terão conseguido. Travis não.

Talvez isto não fosse inteiramente perceptível para quem era um miúdo nos anos 80 ou 90. Para quem era um miúdo nos anos 80 ou 90, “Paris, Texas” era, sobretudo, o deserto e o amor. A aridez do Mojave atravessado por Harry Dean Stanton, mudo e perdido durante a primeira meia hora de filme, e o rosto perfeito de Nastassja Kinski, bela como um anjo caído, na última meia hora. Talvez uma hora. Mas parecia menos. Passava depressa. Ao contrário do Mojave que parecia não ter fim, Kinski era apenas um relance, um vislumbre, do amor, da perfeição – Paris, e já não o Texas. O amor e o deserto. O deserto e o amor. O vazio e a perfeição. O fracasso e a felicidade. O absurdo e a plenitude. Quem era um miúdo nos anos 80 ou 90, sentado a ver Jane (Kinski) e Travis (Dean Stanton) falando através daquela espécie de peep show confessional, não perceberia certamente tudo – mas entendia o alfabeto essencial: o deserto, o amor e o deserto outra vez.

[o trailer de “Paris, Texas”:]

“Paris, Texas” é presença regular em muitas listas dos melhores filmes de sempre. Com justiça. Abriu caminho para outros grandes títulos do autor – “As Asas do Desejo” ou “Até ao Fim do Mundo” – e certificou Wim Wenders como um dos grandes profetas daquele tempo fin de siècle, da exaustão da pop, do fim da História, à procura dum sentido qualquer, antes que esbarrássemos, órfãos, contra o ano 2000. Para o tal miúdo, aparecia um pouco como os R.E.M. – que haveriam, de resto, de ser colaboradores próximos do realizador – e que faziam discos como Document ou Out of Time, claramente com Q.I.s mais elevados do que o resto do panorama, mas falando ainda linguagens suficientemente claras para que as massas os entendessem. Wenders, como Michael Stipe, não tinha a presunção de não ser compreendido; desconstruía ainda à procura de um sentido – e isso era fundamental para quem então estava a crescer e queria, um dia, ter alguma coisa a dizer a alguém.

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Em 2017, o mundo é outro. Afinal, nem a História tinha acabado, nem o mundo colapsou, nem Wenders – ou os R.E.M., a propósito – continuou a ter assim tanto a dizer. Mas “Paris, Texas” permanece um filme essencial. Porque o Mojave e Nastassja Kinski, tal como filmados por Wenders, permanecem imutáveis. Absolutos.

Harry Dean Stanton no papel de Travis Henderson

Como quase todos os grandes filmes, também “Paris, Texas” é mais do que um momento inspirado do seu realizador; é uma equipa em estado de graça: Kinski, Sam Shepard, Ry Cooder, Robby Müller. Shepard, autor do texto com L. M. Kit Carson, torna absolutamente americano um filme que era, na verdade, uma produção franco-alemã. Estão lá os diners e os motéis e os caddies e os chevies, o sonho e a desilusão americana, e o solipsismo das personagens que reconhecemos das peças que escreveu para o teatro (“Loucos por Amor” à cabeça). Ry Cooder acentua a solidão com aquele solo de guitarra que, do início ao fim do filme, vai passando por nós e nos abandonando. E Robby Müller fez aquela fotografia espantosa que contrasta sempre qualquer coisa vermelha, ressaltando do fundo.

Primeiro, é apenas um ponto: o boné de Travis ou os sapatos de Anne (Aurore Clément). Como a singular gota de sangue, a última réstia de vida, pulsão, batimento cardíaco, carne, rodeada pela aridez amarela do deserto, o azul frio do céu, da chapa dos carros ou das montanhas distantes no horizonte, ou o verde sideral das luzes das cozinhas, dos néons, dos candeeiros de rua, das janelas iluminadas dos prédios, à noite, para lá da vidraça. Depois, à medida que Travis recupera a sua vida e o seu lugar, que se recupera a ele próprio, o vermelho vai crescendo, como uma esperança, uma paixão, o coração batendo mais forte.

[a banda sonora de Ry Cooder:]

São as paredes de casa, o estore, a camisa que veste, a camisola do filho. Depois, o vermelho deixa de ser um detalhe para ser um assunto verbalizado pelas personagens: é o carro vermelho em que Jane pela primeira vez aparece, o ponto vermelho que perseguem estrada fora como única hipótese que lhes resta de salvação. Até que Jane finalmente surge – de vestido vermelho, no clube, boca vermelha perfeita, telefone vermelho, cama vermelha. E na luz do clube, vermelha, Travis, com a sua camisa vermelha, desaparece, desvanece-se, dissolve-se, volta a ser ninguém…

Quando Jane voltar a aparecer, para o segundo e derradeiro encontro, já nada será vermelho. Estará de escuro, como Travis. Perfeita através dum vidro, como Wenders, obcecado pela imagem dentro da imagem (o filme em super 8, a fotografia, os grandes billboards publicitários, a janela/espelho do “peep show”, etc) parecer crer ser a única forma de se ser perfeito. Mas de escuro, sem pingo de vida, pulsão, possibilidade. Só o luto, o lamento, a confissão de que se tentou e não se conseguiu.

Nos anos 80 ou 90, quem fosse ainda um miúdo não saberia isto ao pormenor. Não perceberia nada de fotografia. Mas saberia, no íntimo, que desde o início a aridez da areia do Mojave era da cor do cabelo perfeito de Nastassja Kinski. Um anjo caído, louro como o deserto.

O deserto e o amor. Que mais havia a perceber?

[“Paris, Texas” está em sala no Teatro do Campo Alegre, no Porto, e no Espaço Nimas, em Lisboa]

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).