O ministro das Finanças explicou-se (e desculpou-se) em direto. Marcelo Rebelo de Sousa falou ao país e deixou Mário Centeno numa situação politicamente delicada, sem espaço para “erros de perceção”. Os socialistas não gostaram nada das palavras do Presidente da República e fizeram-no saber. O porta-voz do PS, João Galamba, foi tão duro que viu o partido a demarcar-se das suas declarações e foi obrigado a recuar: de tão implicado como Centeno, Marcelo passou a tão inocente como… A direita continua a ensaiar tiro ao alvo no homem das contas de António Costa. Os partidos à esquerda não disfarçam o incómodo e querem esquecer o assunto o mais rápido possível.

Enquanto tudo ferve em Belém e São Bento, no Parlamento ninguém se entende: José Matos Correia (PSD) bateu com a porta da presidência da comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos e ospartidos da direita decidiram abrir uma nova comissão só para a demissão de Domingues. O primeiro-ministro vai tentando fechar o caso, mas a caixa continua aberta. E António Domingues? Não se pronuncia. Mas as SMS que foi trocando com Mário Centeno continuam às voltas. Mais uma semana, mais uma volta no carrossel em que se transformou a polémica Mário Centeno-António Domingues. É preciso apertar o cinto.

SMS? Que SMS? As SMS!

Era a peça do puzzle que faltava: Mário Centeno tinha ou não garantido a António Domingues que estaria isento de apresentar as declarações de rendimentos junto do Tribunal Constitucional? O ministro das Finanças foi sempre evasivo em relação a esse ponto, usando a semântica a seu favor. Como revelou aqui o Observador, algumas das SMS trocadas entre os dois continham detalhes não só sobre a forma como se iria evitar a declaração de rendimentos, como também descrevem a oposição do Presidente da República relativamente à solução encontrada entre o Governo e futuro presidente da Caixa.

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A SIC, que teve acesso ao conteúdo das mensagens, acrescentaria outros detalhes: numa das mensagens enviadas pelo ministro das Finanças a António Domingues, Mário Centeno deu a entender que já tinha conseguido que o novo Estatuto de Gestor Público não incluísse a obrigação da entrega da declaração de rendimentos. Mais: numa outra mensagem, o ministro explica ao ex-BPI que havia atrasos no processo porque Marcelo insistia muito na referência expressa à apresentação da declaração de património.

Outro dado que o conteúdo das SMS agora revelado prova é que o próprio Presidente teve conhecimento do teor das exigências feitas por António Domingues antes de aceitar a presidência da administração da CGD. Marcelo acabaria por promulgar o diploma do Governo para evitar “risco de paralisia” da Caixa Geral de Depósitos, mas deixou avisos ao Executivo socialista. Como viria a revelar mais tarde, quando a questão da entrega ou não entrega da declaração de rendimentos se colocou, Marcelo Rebelo de Sousa entendia que a lei de 1983 obrigava os gestores da Caixa Geral de Depósitos a entregar os documentos juntos do Tribunal Constitucional. Terá sido por isso que deixou passar o decreto-lei.

Um dos protagonistas deste enredo acabaria por ser António Lobo Xavier, que há muito vinha dizendo que existia, de facto, um compromisso entre Centeno e Domingues, de quem é amigo e ex-colega. Esta semana, o histórico do CDS e conselheiro de Estado confirmou ter sido ele a fonte de Marcelo Rebelo de Sousa. O democrata-cristão, no entanto, deixou claro que não tinha qualquer “evidência da participação do primeiro-ministro” nas negociações.

António Domingues, o homem que tem levantado todo esta barulho, continua remetido ao silêncio. Ainda assim, e mais uma vez de acordo com a SIC, António Domingues estava disposto a revelar o teor das mensagens trocadas com Mário Centeno (embora não concorde com a divulgação) se a Comissão de Inquérito à Caixa Geral de Depósitos assim o exigisse. Algo que não vai acontecer nesta comissão. PS, Bloco de Esquerda e PCP juntaram-se e decidiram travar o acesso da comissão às comunicações entre Domingues e Finanças na comissão de inquérito. A decisão da maioria provocaria uma pequeno levantamento no Parlamento.

Na quinta-feira, tufão parlamentar: o presidente da comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, José Matos Correia, demitiu-se do cargo, acusando a esquerda de tentar “sistematicamente” boicotar o órgão a que presidia. Após comunicar a decisão a Ferro Rodrigues, Matos Correia explicou em conferência de imprensa que bate com a porta porque as decisões que os partidos de esquerda têm tomado “violam a lei, são atropelos à democracia e põem em causa o funcionamento da comissão parlamentar de inquérito.”

Centeno em Belém para ouvir o raspanete de Marcelo

Apesar de ter saído em defesa de Mário Centeno numa primeira fase, Marcelo Rebelo de Sousa terá começado a ficar preocupado com a dimensão que o caso estava a ganhar. E foi por isso que, no fim-de-semana, se encontrou com Lobo Xavier, que continuava a garantir que existia um compromisso escrito entre o Governo e Domingues sobre as declarações de rendimento e património, apesar de todos os desmentidos de vários e destacados membros do Executivo socialista.

Foi nesse encontro que viu o conteúdo das mensagens trocadas entre o banqueiro e o ministro das Finanças. E não terá gostado do que lhe foi dito. Na posse destas novas informações, o Presidente da República falou com António Costa (ausente do país) e disse-lhe que queria falar com Centeno. A conversa terá durado meia hora, segundo contou o Observador, mas Marcelo foi bastante claro: o ministro das Finanças tinha de se explicar ao país.

Com cara carregada e uma expressão corporal insegura, pouco depois das 17h30, a partir do Ministério das Finanças, em Lisboa, Mário Centeno fez uma espécie de mea culpa. Negou que existisse de facto um compromisso escrito com António Domingues, mas admitiu que talvez tivesse existido um “erro de perceção mútuo”. Mais: confirmou que tinha sido recebido por Marcelo em Belém e admitiu que tinha reiterado ao primeiro-ministro que o seu lugar estava a disposição — como sempre esteve desde o primeiro dia, frisou. Numa conferência de imprensa que demorou mais de uma hora, Centeno não conseguiu esclarecer tudo o que faltava a esclarecer.

Se a chamada a Belém já tinha deixado Centeno numa situação de fraqueza política, o comunicado politicamente assassino de Marcelo Rebelo de Sousa deixou o ministro das Finanças ainda mais fragilizado. O Presidente da República foi taxativo: num comunicado muito duro, Marcelo garantiu que tinha registado “as explicações dadas pelo senhor ministro das Finanças, bem como a decorrente disponibilidade para cessar as suas funções, manifestada ao senhor primeiro-ministro”. Também assinalou o facto de Centeno ter admitido em direto o “eventual erro de perceção mútuo na transmissão das suas posições”: uma forma de o PR dizer que afinal aquilo que estava combinado não deve ter sido cumprido, pois caso contrário não havia lugar para ambiguidades.

A sentença de Marcelo viria sob a forma de três palavras, 24 letras: Centeno só não caiu por “estrito interesse nacional”. Sem fazer qualquer defesa das explicações dadas pelo ministro das Finanças, o Presidenta da República deixava ainda mais enfraquecido ao fazer questão de dizer ser o “estrito interesse nacional” que o aconselha a isso. Para memória futura fica também o que Marcelo disse nas entrelinhas: Centeno só se aguenta em nome do interesse nacional, noutras circunstâncias teria sido demitido. Ou seja, já só tem a confiança do primeiro-ministro. Os socialistas não o perdoariam por isso.

Na quinta-feira, e depois de ter sido criticado por alguns responsáveis socialistas, Marcelo foi taxativo: “Assunto encerrado. Ponto final, parágrafo”. Por muito que Marcelo e Costa tentem, a polémica da Caixa não fecha.

Socialistas reagem mal às palavras de Marcelo. E Costa acalma as hostes

Entre os socialistas, o desagrado pelo envolvimento do Presidente da República foi evidente. O deputado socialista Porfírio Silva pediu a Marcelo que “respeitasse os poderes próprios e dos demais órgãos de soberania”. Ascenso Simões, também deputado do PS, considerou “vergonhosa” a nota presidencial. O constitucionalista Vital Moreira, ex-deputado socialista, juntou-se ao coro de críticas: “Os ministros não carecem da confiança política do Presidente da República. Quando um ministro se sente na necessidade de colocar o seu lugar à disposição, fá-lo perante o primeiro-ministro, não perante o Presidente”.

Seria, no entanto, o porta-voz do PS, João Galamba, a levar as críticas mais longe: Marcelo estava “profundamente implicado” na polémica da Caixa. “O que ele tentou fazer na segunda-feira, político hábil como é, foi tentar demarcar-se disto e tentar desresponsabilizar-se de uma responsabilidade que é também sua”, afirmou o socialista.

O presidente do PS, Carlos César, acabaria por se demarcar das declarações do porta-voz do seu partido. “João Galamba não participa nesse programa [Sem Moderação, transmitido pelo Canal Q e pela TSF] como deputado ou como porta-voz do PS“.

Mais tarde, João Galamba seria obrigado a dar um passo atrás. “O que eu disse foi que discordava das acusações que estavam a ser feitas ao ministro das Finanças com base no conteúdo de um SMS, disse que eram uma fabricação política. Mas se queriam acusar o ministro das Finanças à luz do SMS, então isso também tinha implicações no Presidente da República. O Presidente da República é responsável pelas mesmas coisas de Mário Centeno, que é nada”. Uma cambalhota à retaguarda, apoiada numa lógica à Aristóteles, como escreveu o Observador.

E António Costa? O primeiro-ministro decidiu acalmar as hostes do partido e deu o caso por encerrado. Ou tentou dar. “O quê, ainda andam com esse assunto? Ainda não ouviram o senhor Presidente da República? Isso já acabou tudo na segunda-feira”, disse Costa, quando confrontado pelos jornalistas sobre o assunto, à margem de uma iniciativa em Oeiras. Acabou um episódio, mas teve sequela.

Na segunda-feira, logo depois da conferência de imprensa de Mário Centeno, o primeiro-ministro — que estava no estrangeiro — já tinha reafirmado a confiança no ministro das Finanças. “Tendo lido a comunicação do senhor ministro das Finanças e após contacto com Sua Excelência o Presidente da República, entendo confirmar a minha confiança no professor Mário Centeno no exercício das suas funções governativas”, garantiu António Costa. O ministro das Finanças sobreviveu. Para já: no que depender da direita, o economista tem de cair.

O que diz a esquerda desta confusão?

Fogem como podem. Bloquistas e comunistas nunca esconderam o desconforto pela forma como Centeno e o Governo socialista geriram o dossier da Caixa Geral de Depósitos. A atuação do ministro das Finanças esteve longe de ser perfeita, foram admitindo os partidos mais à esquerda. Mas os parceiros parlamentares dos socialistas contiveram-se nas críticas.

“A nossa convicção foi sempre de que tanto o Ministério das Finanças como a anterior administração da Caixa tinham a convicção de que podiam escapar às leis sobre a transparência. O BE sempre disse que essa era uma visão derrotada, essa visão foi derrotada, obrigou à substituição da administração da Caixa, as regras da transparência estão a ser cumpridas no país”, afirmou Catarina Martins. A coordenadora do Bloco de Esquerda já o tinha dito antes e esta sexta-feira repetiu-o: “o caso está encerrado desde o ano passado”.

O mesmo vale para o PCP. Para os comunistas, assim como para o Bloco, a novela em que se transformou este caso é manobra de PSD e CDS para travarem a recapitalização da Caixa e garantirem a sua privatização. O PCP, no entanto, fez questão de vincar a sua posição. E mediu bem as palavras no comunicado enviado às redações: “A ter existido” um comportamento errático do ministro das Finanças, tal “confronta-se com a posição e a crítica do PCP”, sublinharam os comunistas, responsabilizando Costa pela decisão de manter o ministro. “A decisão sobre a manutenção em funções do ministro das Finanças cabe ao primeiro-ministro que entretanto já se pronunciou, em articulação com o Presidente da República, pela sua continuidade”, assinalaram.

Constitucional exige declarações e PSD e CDS avançam para nova comissão

Esta sexta-feira, foi divulgado o acórdão do Tribunal Constitucional que esclarece todas as dúvidas que pudessem restar: os administradores da Caixa Geral de Depósitos terão mesmo de entregar a declaração de rendimentos — qualquer exceção ao princípio de transparência seria uma “insustentável subversão valorativa“, sustentaram os juízes do Palácio Ratton. Presume-se que que a partir deste acórdão, as declarações de rendimentos de António Domingues e do resto da equipa possam ser consultadas.

No mesmo dia, PSD e CDS decidiram avançar com a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito sobre o envolvimento do ministro das Finanças, Mário Centeno na contratação de António Domingues. A futura comissão, esperam sociais-democratas e democratas-cristãos, averiguará o período desde a negociação para a nomeação da anterior administração da CGD até à demissão de António Domingues. A novela da Caixa não vai ficar por aqui.