O ministro das Finanças mentiu ou não mentiu? Fica no Governo com a confiança do primeiro-ministro e a desconfiança resignada do Presidente da República? O dossiê Mário Centeno e o processo de contratação de António Domingues para a Caixa Geral de Depósitos deve regressar ao debate quinzenal com António Costa esta quarta-feira à tarde. O primeiro-ministro quis fechar o caso na semana passada, mas há cada vez mais questões que nunca esclareceu. Só neste assunto, o Observador elenca oito perguntas possíveis. Podiam ser mais.

Mas não só de Caixa se fará o debate, até por os partidos de direita estarem a guardar munições para a nova comissão de inquérito que vão criar com o objetivo de acederem às SMS trocadas entre o ministro das Finanças e o ex-presidente da CGD. Há outros temas a que o primeiro-ministro ainda não respondeu, ou pelo menos não deu respostas que agradem ao PSD e ao CDS e mesmo aos apoiantes do PCP e do Bloco: a visita cancelada da ministra da Justiça a Angola, a folga no défice, as contas da dívida, a promessa sobre a neutralidade fiscal do ISP ou a venda do Novo Banco.

Bem na véspera do debate, contudo, surgiu outra questão que não passará ao lado dos deputados e do Governo esta quarta-feira, e que pode ser usada como trunfo para a esquerda: os quase dez mil milhões de euros que foram transferidos para offshores entre 2011 e 2014 (no tempo do anterior Governo), e que não foram alvo de qualquer tratamento por parte da Autoridade Tributária, ainda que as transferências tenham sido comunicadas pelos bancos ao Fisco. Paulo Núncio, à data secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, nega conhecer essas transferências, mas o tema, lançado esta terça-feira para as manchetes dos jornais pelo jornal Público, não fugirá ao debate.

Todas as perguntas sobre a Caixa: Costa sabia do “erro de perceção mútuo”?

É o primeiro debate quinzenal depois da conferência de imprensa de Mário Centeno a assumir o “erro de perceção mútuo” no caso da Caixa Geral de Depósitos. É a primeira vez que o chefe do Governo pode ser confrontado pelos partidos com o comunicado do Presidente da República a assumir que só aceitava a confiança do primeiro-ministro no ministro das Finanças “atendendo ao estrito interesse nacional em termos de estabilidade financeira”. António Costa fez um comunicado a dizer que mantinha a confiança no ministro depois de falar com o Presidente (quando estava numa visita ao estrangeiro), e rapidamente procurou esvaziar o assunto, mas concorda ou não com Marcelo? Também acha que Centeno deve ficar no Governo só porque o “interesse nacional” o exige?

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Se há duas semanas foi obrigado a defender Mário Centeno perante os deputados e a dizer que o ministro “não mentiu” ao Parlamento, vai ter de continuar a proteger o titular das Finanças.

O ministro das Finanças não mentiu. Eu não tiro conclusões sobre a posição do ministro com base em compromissos que terceiros alegam que ele tem, sem que haja qualquer prova”, respondeu Costa no último debate quinzenal.

Aqui o primeiro-ministro escapava à pergunta sobre os emails enviados por Domingues a Centeno, e que tinham sido divulgados pelo jornal online Eco (nos quais o presidente da Caixa reclamava um acordo firmado com as Finanças para não entregar as declarações ao Tribunal Constitucional). Agora, falta ao primeiro-ministro explicar por que razão houve um “erro de perceção mútuo” e se o conhecia.

O caso não está, portanto, encerrado, como António Costa tentou decretar na semana passada, quando disse aos jornalistas: “O quê, ainda andam com esse assunto? Ainda não ouviram o senhor Presidente da República? Isso já acabou tudo na segunda-feira”. Não acabou nem está para acabar. Há lacunas na história. Resta saber como vai a oposição explorar o tema.

Costa diz que assunto da CGD “acabou” na segunda-feira com intervenção de Marcelo

As questões a que António Costa poderia esclarecer sobre este assunto dão para fazer uma lista. Por exemplo:

  1. Desde quando é que o primeiro-ministro sabia que António Domingues queria isentar a sua equipa de apresentar a declaração de rendimento e património no Tribunal Constitucional?
  2. Se a interpretação do Governo era a de que a lei de 1983 sobre o controlo público da riqueza obrigava à entrega das declarações no TC — e permanecia em vigor mesmo com a alteração ao EGP –, porque não assumiu António Costa de imediato essa interpretação e decidiu esperar que o TC se pronunciasse? (O primeiro-ministro fez questão de não dar a sua interpretação da lei e disse que cabia ao TC decidir se devia notificar os gestores).
  3. Sabia desde quando que tinha havido o chamado “erro de perceção mútua” entre Centeno e Domingues?
  4. Continua a dizer que o ministro não mentiu?
  5. António Costa tinha a informação de que o texto da alteração legislativa ao EGP tinha sido redigido à medida, por uma sociedade de advogados que trabalhava para Domingues?
  6. O primeiro-ministro concorda que tenha sido a Caixa a pagar essa fatura ao escritório de advogados?
  7. Se o Presidente da República — informado pelo Governo –, não tinha dúvidas sobre o alcance da exceção ao EGP, por que razão houve o “erro de perceção mútuo”?
  8. António Costa já viu os SMS trocados entre Centeno e Domingues, mostrados a Marcelo Rebelo de Sousa por António Lobo Xavier?

Porque decidiu Angola adiar a visita da ministra da Justiça Francisca van Dunem?

Nova polémica a exigir esclarecimentos do primeiro-ministro e mais um tema que pode entrar no debate desta quinta-feira: a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, adiou esta quarta-feira uma visita oficial de três dias a Angola, a pedido das autoridades angolanas. A informação foi tornada pública horas antes do voo para Luanda desta governante que tem ligações familiares a dirigentes do próprio MPLA.

Angola suspende visita oficial de ministra da Justiça

A questão passa por saber se o Governo angolano cancelou a visita na sequência de o Ministério Público português ter acusado formalmente Manuel Vicente, vice-presidente de Angola, da alegada prática dos crimes de corrupção ativa na forma qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documento.

O que levou à acusação de corrupção contra Manuel Vicente?

De todos os partidos, o que reúne mais probabilidades de fazer uma pergunta sobre este tema é o Bloco de Esquerda. A saber: qual foi a razão do cancelamento e adiamento da visita da ministra da Justiça a Angola e qual será a resposta diplomática do Estado português?

Novo Banco vai ser vendido na totalidade, com despedimentos?

À esquerda, o dossier mais sensível no horizonte próximo do Executivo socialista é a venda do Novo Banco e o objetivo anunciado pela administração esta quarta-feira para reduzir 350 trabalhadores até ao verão através de um programa de rescisões amigáveis e reformas antecipadas. Na semana em que o Banco de Portugal anunciou a escolha do fundo Lone Star para negociar em exclusivo a compra do antigo BES, comunistas e bloquistas já fizeram saber ao Governo que estão contra a venda do banco a fundos privados.

Num comunicado que fez chegar às redações, o PCP insistiu na pretensão de manter o banco na esfera pública. A venda do Novo Banco, defendem os comunistas, será sempre uma decisão contrária ao interesse nacional. O Bloco de Esquerda não admite que o Governo pague para “entregar” o antigo BES a “um fundo abutre”, diz uma resolução do BE.

Na segunda-feira, Mário Centeno admitiu que o Novo Banco pode não ser vendido a 100%. O ministro das Finanças lembrou que, no caderno de encargos da venda consta que “é uma venda a 100%”, mas deixou escapar que “existe também uma segunda via da negociação possível que não envolve a venda a 100% do banco”. “Há diferentes carris negociais que o Banco de Portugal tem trilhado. Temos que aguardar”, sublinhou Centeno.

António Costa poderá ter de responder aos parceiros de esquerda pelo menos a duas questões deste tipo:

  1. Por que não fica o Novo Banco na esfera do Estado? E a venda é mais ou menos onerosa para os contribuintes do que a manutenção do ex-BES no domínio público?
  2. Apoia o plano de rescisões e reformas antecipadas, considerando que em 2016 houve um despedimento coletivo de 49 trabalhadores para cumprir o que estava acordado com Bruxelas?

Outro aspeto que permanece por esclarecer junto da esquerda tem a ver com as Parcerias Público-Privadas na Saúde. O Governo socialista decidiu avançar com um concurso público internacional para a gestão do Hospital de Cascais — uma iniciativa que os dois parceiros parlamentares dos socialistas condenaram de imediato. Bloco de Esquerda e PCP não parecem dispostos a fazer cair o assunto e deverão continuar a pressionar o Governo a desistir da ideia.

A folga alcançada no défice de 2016 foi à custa de medidas extraordinárias e é para investir?

A esquerda poderá insistir na folga conseguida no défice do ano passado, já que a a meta da Comissão era de 2,5% e o valor que o Governo diz ter alcançado situa-se em 2,1%. A questão já foi colocada por BE e PCP a Mário Centeno na semana passada numa audição parlamentar, com os dois partidos a dizerem que o défice podia ter sido mais alto. Em vez do esforço extra, os parceiros do PS no Parlamento gostariam de ter visto investimento nos serviços públicos. O ministro das Finanças foi evasivo na resposta e é quase certo que a linha de raciocínio da esquerda será usada hoje, até porque é inevitável que Costa embandeire em arco com o valor de défice de 2,1%.

O primeiro-ministro terá, então, de explicar por que motivo preferiu ir mais longe no esforço de contenção — indo além de Bruxelas –, em vez de aproveitar a folga para “acelerar políticas de reposição de rendimentos”, como queria a esquerda. Também falta explicar como conseguiu o Governo ir além daquela que era a sua própria expectativa (2,3%) para o défice no ano passado.

Uma explicação que a direita poderá exigir, juntando a acusação de o controlo do défice ter sido feito à custa do PERES (a regularização de dívidas à segurança social e fisco, ou “perdão fiscal”), ou à custa da poupança de mil milhões de euros pela não execução de investimentos, como acusa o PSD. Ou, ainda, devido às cativações que a direita considera serem “cortes permanentes”, como dizia um deputado social-democrata ao Observador. Ou seja, as perguntas à esquerda e à direita que Costa tem por responder podem aproximar-se destas:

  1. O Governo está disponível para reinvestir a folga do défice no reforço do Serviço Nacional de Saúde, nos Transportes ou na redução da carga fiscal?
  2. Continua a negar que houvesse Plano B e medidas extraordinárias para controlar o défice?

O Governo estava a mentir quando disse que o ISP ia variar em função do preço de petróleo?

O Executivo tinha assumido, há um ano, o compromisso de rever trimestralmente o valor imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) em função da variação do preço do petróleo. Mas esta semana anunciou que não vai fazer quaisquer alterações a este imposto em 2017.

O tema é caro ao CDS e faz parte da agenda preferida de Assunção Cristas, que leva quase sempre na manga perguntas sobre impostos. No fim de semana, o deputado Pedro Mota Soares reagiu à notícia dizendo que aquela informação “desmente o que o Governo disse no último ano”, ou seja, que o aumento de impostos não era para garantir a neutralidade mas para garantir mais receita para o Orçamento de Estado. O PS deu a palavra e não a está a honrar”. Mais um motivo para a líder do CDS voltar a acusar António Costa de mentir, o que tem feito com frequência. O CDS vai mesmo apresentar uma iniciativa legislativa para acabar com o aumento do ISP e desafiar os partidos de esquerda que são a favor da reposição de rendimentos.

O Governo deverá dizer que o compromisso se referia apenas ao ano de 2016, como o Ministério das Finanças já respondeu à TSF.

Afinal a dívida pública subiu mais do que o Governo tinha previsto?

O Governo tem mantido o discurso sobre o controlo da dívida no valor da dívida líquida, que caiu em 2016. Mas a oposição (e não só) tem feito questão de exigir ao Governo que reconheça o aumento da dívida bruta. Mário Centeno já explicou que se deveu ao apoio ao setor financeiro, nomeadamente ao Banif, mas o primeiro-ministro não escapará à mesma questão, que tem sido repetida pela oposição à direita.

Com a divulgação dos dados do Banco de Portugal (BdP) esta terça-feira será difícil ao Governo fugir à questão. Segundo o BdP, a dívida pública na ótica de Maastricht subiu para 130,6% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2016, acima dos 129% registados no ano anterior, segundo divulgou esta terça-feira o Banco de Portugal (BdP).

Depois da quebra registada em 2015, 2016 voltou a ser um ano de aumento do peso da dívida. Isto significa que a dívida pública ficou acima do previsto pelo Governo, que, segundo o Orçamento do Estado para 2017, estimava que este indicador subisse de 129% do PIB em 2015 para 129,7% do PIB no final de 2016. No último debate quinzenal, António Costa alegava que o diferencial de 0,7% se devia à resolução do Banif.

Os parceiros de esquerda também aproveitam os debates para tocar num dos nervos (assumido) da geringonça: a restruturação da dívida, cujo relatório do grupo de trabalho constituído pelo Governo, PS e Bloco deve estar para sair.