O anterior e o atual secretários de Estado dos Assuntos Fiscais vão ser ouvidos no parlamento na quarta-feira, sobre a transferência, sem análise pelo Fisco, de 10.000 milhões de euros para offshore entre 2011 e 2014.

Na semana passada, o jornal Público noticiou que nesses quatro anos quase 10.000 milhões de euros foram transferidos para contas sediadas em paraísos fiscais sem qualquer controlo da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), embora tenham sido comunicados ao Fisco pelos bancos, como a lei obriga.

Entre 2011 e 2015, enquanto Paulo Núncio era secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, não foram publicadas as estatísticas da AT com os valores das transferências para offshore, uma publicação que tinha sido tornada obrigatória em 2010 pelo então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Sérgio Vasques (último Governo de José Sócrates).

As estatísticas só voltaram a ser publicadas no Portal das Finanças por decisão do atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, que mandou divulgar os dados que estavam em falta, sendo que foi nessa altura que o Ministério das Finanças detetou “divergências e omissões” nos valores das transferências para os paraísos fiscais.

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“Houve 20 declarações que foram apresentadas por instituições financeiras que não foram objeto de qualquer tratamento pela AT”, afirmou o Ministério das Finanças ao Público.

Em causa estão as Declarações de Operações Transfronteiras que os bancos têm de enviar ao Fisco, indicando informações como o valor, o número do contribuinte que ordenou a operação ou o código do país para onde o dinheiro foi enviado.

Estas declarações, segundo disse o Ministério das Finanças ao jornal, “estão agora a ser objeto de controlo pela inspeção tributária”, sendo que o caso foi remetido para a Inspeção-Geral de Finanças.

Desde logo, a audição parlamentar de Rocha Andrade e de Paulo Núncio para prestarem esclarecimentos sobre as transferências de capitais para offshore foi pedida por PSD, PCP e BE, enquanto o PS pediu apenas para ouvir o atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

Em declarações ao Diário de Notícias na sexta-feira, Paulo Núncio começou por responsabilizar a AT pela não divulgação pública das estatísticas, afirmando que “essa divulgação não estava dependente de uma aprovação expressa ‘a posteriori’ do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais”.

No entanto, Paulo Núncio acabou por ser desmentido, no mesmo dia, pelo antigo diretor-geral do fisco Azevedo Pereira, que garantiu ter solicitado autorização, por duas vezes, ao ex-secretário de Estado para publicar dados relativos às transferências para ‘offshore’, mas “em nenhum dos casos” esta lhe foi concedida.

O ex-diretor-geral da AT indicou que, na primeira vez, o ex-secretário dos Assuntos Fiscais lhe pediu uma “alteração na estrutura da informação a divulgar” e, depois de feita, não respondeu.

Quanto ao segundo pedido, Azevedo Pereira esclareceu que Paulo Núncio limitou-se a despachar com um “visto”, mas “não autorizou a sua divulgação, tal como lhe foi solicitado”.

Na nota enviada às redações, Azevedo Pereira admite poderem ter existido “erros de perceção” na troca de informação com o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, mas considerou que esses erros “nunca demoram quatro anos a resolver” e conclui que, se Paulo Núncio tivesse a intenção de os fazer publicar, teria tido oportunidade de o fazer até à sua saída do governo.

No sábado, Paulo Núncio acabou por assumir a sua “responsabilidade política” pela não publicação desses dados, demitindo-se também das suas funções no CDS-PP (partido onde era vogal da Comissão Política Nacional).

“Tendo em conta o tempo que decorreu entre os factos e o presente e tendo tido agora a oportunidade de revisitar os documentos que têm sido noticiados, nomeadamente os apresentados pelos serviços para publicação de informação estatística das transferências transfronteiriças, considero legitima a interpretação dos serviços que levou à não publicação das estatísticas no portal das Finanças”, afirmou Paulo Núncio.

Na segunda-feira ao final do dia, o Ministério Público fez saber que está a recolher elementos sobre o caso.

Nas reações, o PCP considerou que a “confissão” do ex-secretário de Estado responsabiliza não só o CDS, mas também o PSD e o anterior governo, enquanto o BE entendeu que “fica por esclarecer o mais importante: como foi que 10.000 milhões desapareceram das listas de transferências para offshore”.

Já o PSD vai avançar com uma iniciativa legislativa para que a publicação obrigatória das transferências para offshore deixe de depender da autorização do Governo.

Na quarta-feira, será debatido também um requerimento do PSD para ouvir no parlamento os diretores-gerais da Autoridade Tributária e Aduaneira que exerceram funções desde 2011, bem como do inspetor-geral das Finanças.