Título: “A Avó e a Neve Russa”
Autor: João Reis
Editor: Elsinore
Páginas: 224
Preço: 16,59€

Em A Avó e a Neve Russa, João Reis conta as aventuras de um rapaz canadiano com dez anos que decide tudo fazer para salvar a sua avó, moribunda devido a um cancro contraído em Chernobyl, sendo pela voz da própria criança que esta história é narrada.

A proposta é arrojada e, embora João Reis revele aqui e ali virtudes literárias interessantes, parece ainda não ser inteiramente capaz de aguentar uma narrativa tão ambiciosa como esta a que se propõe. Para se precaver das enormes dificuldades que um romance deste género levanta, Reis informa-nos logo nas primeiras páginas de que este rapaz não é uma criança comum, tendo um vasto vocabulário que procura sempre reforçar. Sabemos também que o protagonista (órfão de mãe e abandonado pelo pai), fruto das muitas horas que passara com a sua avó, é uma “alma velha” (p.24), com uma visão do mundo extraordinariamente precoce para a sua idade, o que o leva a usar expressões típicas de senhoras aposentadas, como “já não existem homens como antigamente” (p.42).

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No entanto, e apesar de todas as cautelas de que o autor se revestiu, mesmo aceitando que este jovem não é uma criança normal, é difícil conceber que um aluno do quarto ano seja capaz de considerações marxistas em relação à evolução da história (“é assim que os países mudam, com a força dos martelos” (p. 82)), que consiga explicar poeticamente a escolha pelo suicídio de um sobrevivente do Holocausto (“não aguentou a pressão que cai sobre um sobrevivente e o esmaga” (p.96)), ou que seja capaz de reproduzir de forma irrepreensivelmente coerente um denso monólogo de três páginas onde se ataca o capitalismo, a religião e o discurso da arte, monólogo esse que o próprio, aliás, admite não ter compreendido (“Não percebi bem o que disse o dr. Richardson” (p.193)).

A propósito deste último ponto, é importante realçar que João Reis parece esquecer que, sendo a história contada a partir do ponto de vista de uma criança, os acontecimentos não podem ser narrados como objectivamente aconteceram mas antes como esta os apreendeu. Assim, é difícil compreender momentos como aquele em que o sem-abrigo Matt, fiel companheiro do protagonista, lhe conta uma longa história para adormecer que é depois narrada pela criança ipsis verbis, mesmo quando se utilizam expressões como “à luz coada pela claraboia” (p.169). Não existe, portanto, a mínima perda de inteligibilidade causada quer pela diferença entre a narração da história e a audição da mesma quer pelo intervalo necessariamente existente entre a audição e a re-narração da história feita pelo pequeno herói aos seus ouvintes.

João Reis parece querer, com este romance, explorar uma nova perspectiva que lhe permita observar a realidade através de um olhar infantil, como se visse o mundo pela primeira vez. Se é difícil negar o interesse da empreitada, os resultados desta são, contudo, muito díspares. É de louvar a criação de expressões que resultam de uma deficiente compreensão da realidade por parte da criança, como “Antiga Soviética”, “doutores médicos” ou “idosos da velhice”, mas custa compreender os exageros de sensibilidade do narrador quando, por exemplo, este afirma que a chuva perguntava ao senhor Ade “se rezar é pesado” (p.143).

O problema principal do romance é, contudo, outro. João Reis percebe que o sucesso de A Avó e a Neve Russa depende inteiramente da construção deste ponto de vista e exagera o seu alcance. Assim, não parece existir um único assunto relevante que não seja explorado à luz deste olhar infantil. Todos os temas minimamente controversos são analisados pela criança, sendo que, em boa verdade, ao contar uma história que se desenrola por volta de 1996 no seio de uma família que emigra de Chernobyl para Montreal na altura do acidente nuclear, João Reis encontrou o pretexto ideal para o fazer. Não é, portanto, de espantar que o narrador, por novo que seja, se pronuncie acerca da Guerra Fria e da Rússia e de Chernobyl, da morte e da imigração, da queda do muro de Berlim e de Estaline, do comunismo, do capitalismo e do multiculturalismo.

É, no entanto, demasiado ardilosa e denunciada a maneira que João Reis encontra para colocar essa mesma criança a falar do Judaísmo, do Islamismo e do Hinduísmo, da Igreja Católica e da Ortodoxa, da Santíssima Trindade e de franchisings, do Terceiro Reich, da xenofobia e do alcoolismo, da despenalização das drogas leves, do aborto e de Napoleão, de mudanças de sexo, do sexo, do tabaco e seus malefícios, da China e da menstruação. E da pobreza. E do trabalho de menores. E, finalmente, da pornografia e da pedofilia, e da vida nas prisões, ficando apenas de fora deste vasto elenco das questões do nosso tempo a eutanásia, o casamento homossexual e a guerra do Kosovo.

João Reis tem, todavia, uma intuição absolutamente certeira: reproduzir o discurso de uma criança implica fazer inúmeras iterações que transmitam a persistência infantil que conduz quase infalivelmente os adultos à irritação e ao desespero. Por isso, é compreensível que o narrador se repita uma e outra e outra vez. Mas, ainda assim, estas repetições são levadas ao extremo no livro (particularmente quando, pelo que acima se explica, a captação desse mesmo tom juvenil falha em outros aspectos), sendo em alguns momentos cansativo porque desnecessário ver o protagonista repetir, num romance de apenas duzentas e vinte páginas, nove vezes um trocadilho involuntário entre ornitologia e oncologia, dezanove variantes da expressão “Antiga Soviética” ou vinte e três referências ao tema do Holocausto.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.