“Como dizia o meu tio-avô Pinheiro de Azevedo, que foi primeiro-ministro, bardamerda para todos aqueles que não são do Sporting Clube de Portugal.”
Bruno de Carvalho, no seu discurso de vitória, depois de ser reeleito presidente do Sporting, na madrugada de domingo, dia 5 de março

O tio-avô de Bruno de Carvalho estava cada vez mais nervoso, e cada vez mais desgostoso, e cada vez mais furioso. A 12 de novembro de 1975, o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo estava novamente cercado — politicamente e literalmente. Tinha sido tudo muito rápido. De repente, já não havia como escapar e todas as portas do Palácio de São Bento estavam fechadas. Lá dentro, além do chefe do VI Governo Provisório (que ficaria conhecido pelo elogioso cognome “O Almirante Sem Medo”), estavam algumas centenas de deputados à Assembleia Constituinte, funcionários parlamentares e ministros. Lá fora, vários milhares de trabalhadores da construção civil. Os sentimentos dos primeiros variavam entre o medo, a apreensão e a raiva. Os sentimentos dos segundos não variavam – todos estavam furiosos.

Frustrados com o impasse na negociação do novo contrato colectivo vertical para o sector (sim, naquele tempo estas coisas eram mesmo importantes), os operários organizaram uma manifestação. O destino final da multidão, que se juntara no Terreiro do Paço, deveria ser o Ministério do Trabalho. O problema é que, com medo de que houvesse uma invasão do edifício, o ministro mandara encerrar as portas e as janelas. Esta medida conseguiu ser ao mesmo tempo prudente e insensata. Prudente, porque evitou um cerco ao ministério. Insensata, porque deixou os manifestantes sem um alvo evidente. Ao faltar-lhes um ministro a quem pudessem gritar, os operários decidiram subir mais um passo na hierarquia do Estado e foram directos à residência oficial do primeiro-ministro, o almirante Pinheiro de Azevedo.

Não era preciso trabalhar nos Correios para saber onde isso ficava – ficava em São Bento. Ao cercarem o chefe do Governo, os trabalhadores da construção civil também cercaram os seus vizinhos do lado. A partir do final da tarde, os deputados à Assembleia Constituinte tornaram-se oficialmente vítimas de um sequestro político.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Pinheiro de Azevedo tentou acabar com tudo aquilo durante a noite, confiando na sua retórica, nas suas credenciais revolucionárias e na pura força da vontade. Fracassaram as três, numa terrível sequência: primeiro, a retórica tropeçou numa confusão; depois, as suas credenciais revolucionárias revelaram ser curtas; por fim, a força da vontade cedeu à frustração.

As negociações dentro de São Bento até correram bem. O próprio Diário de Notícias, que na época era dominado pelo PCP, admitiu que o primeiro-ministro cedeu para conseguir “acordos parciais quanto a algumas das reivindicações apresentadas”. Pinheiro de Azevedo achou que eles seriam mais do que suficientes para satisfazer os manifestantes. Por isso, conta o Diário Popular, foi à varanda do palácio e anunciou, perante a impaciência da multidão:

“Penso que têm interesse em ouvir as minhas palavras, independentemente da simpatia que tenham por mim. Está em causa a política, os vossos interesses, o vosso espírito de classe (assobios). Aliás, vocês só me conhecem por aquilo que dizem os jornais. Vocês não me conhecem (vaias). Vamos aos factos: o resultado das negociações, pois entendo que isso é que é importante. O governo acedeu que até dia 27 será apresentada uma portaria para regularizar o acordo de trabalho, porque não é possível chegar-se a acordo neste momento…”

Esta última frase foi fatalmente ambígua: o primeiro-ministro queria dizer uma coisa; os manifestantes entenderam outra e recorreram aos “assobios”, às “vaias” e aos “gritos de ‘fascista, fascista, fascista'”. Pinheiro de Azevedo ainda tentou desfazer aquele terrível equívoco, insistindo que o Governo tinha concordado com algumas das exigências dos trabalhadores:

“Eu julgo que não me fiz compreender. Quando digo ‘não é possível acordo entre as duas partes’ é entre os empresários e vocês (‘Fascista, fascista!’; ‘Vasco, Vasco!’). Chegámos a acordo e estou ao vosso lado. Até dia 27 sai a portaria. Foi isso que pediram os vossos delegados.”

O DN contou que “o primeiro-ministro começou depois a dizer abertamente que no seio dos trabalhadores havia grupos provocatórios que estavam a ‘manipular’ a manifestação”. E isso, claramente, não ajudou. A multidão respondeu-lhe com gritos de “divisionista” e “fascista”. Pinheiro de Azevedo ainda insistiu na sua tentativa de mostrar que o Governo estava a ceder:

“Considero que é necessário fazer um inquérito ao Ministério do Trabalho, pois sou sensível à opinião das massas.”

Mas “as massas” já não o queriam ouvir. Só gritavam “Vasco, Vasco, Vasco voltará!”, numa referência ao ex-primeiro-ministro Vasco Gonçalves, e “Fascista, fascista!”. Pinheiro de Azevedo, “perdendo por completo o domínio de si próprio”, como escreveu o DN, disparou: “Ah, vocês também não gostaram desta. É-me indiferente que vocês acreditem ou não!”. Quando ouviu de novo os berros de “Fascista, fascista!”, disse a frase que entrou para a história com bolinha vermelha:

“Vão bardamerda mais o fascista!”

Segundo o DN, foi o fim: “A partir do momento em que proferiu estas palavras, os trabalhadores não mais o deixaram falar. Gritos, assobios, vaias impediam-no de prosseguir, não obstante as múltiplas tentativas que fez nesse sentido. Ninguém o ouvia”. O Voz do Povo, jornal oficial da UDP, relata que, numa derradeira insubordinação, os trabalhadores ainda gritaram ao primeiro-ministro: “Vai trabalhar p’rás obras!”.

Não havia mais nada a fazer. O DN conta que Pinheiro de Azevedo, “visivelmente amargurado, decidiu retirar-se”. E acrescentou, com ironia: “Mas não sem antes agradecer ‘as poucas palavras [de apoio] que ouviu’. Que não foram nenhumas”.

“Hoje não batem os dentes!?”

O cerco continuou. Dentro do Palácio de São Bento, a primeira coisa a acabar foi a comida: o bar da Assembleia não tinha mantimentos suficientes para todos. A segunda coisa a acabar foi a resistência física: a partir de dada altura, vários deputados encostaram a cabeça aos tampos das suas secretárias ou deitaram-se nos sofás dos Passos Perdidos. Um jornalista do Diário de Notícias descreveu um ambiente de “roncos e suspiros”. O seu gozo por estar a assistir a uma humilhação da burguesia era indisfarçável: “Extremamente curiosa a pose de um deputado doutor, precocemente regressado aos seus hábitos de infância. Resplandecente de candura, chuchava no indicador ‘reaccionário’.” Colocados numa situação de onde não podiam sair, todos os deputados prefeririam estar noutro lado qualquer.

Quer dizer: todos, não. Na realidade, vários deputados gostaram de ser sequestrados, mesmo que alguns se sentissem obrigados a dizer que discordavam daquele método de luta. Para a UDP, para o PCP e para o MDP/CDE, a manifestação era mais uma prova do poder das massas.

[Veja algumas imagens do cerco à Constituinte a partir do minuto 3.55 deste vídeo]

https://www.youtube.com/watch?v=ux2Vn3K7Jew

Logo que percebeu o que se estava a passar, o deputado da UDP, Américo Duarte, foi para o átrio do edifício “dialogar com manifestantes e soldados”. Quando, dias mais tarde, foi confrontado no plenário com a sua atitude, respondeu: “É junto à minha classe que me pertence estar e não junto a estes fascistas”. Perante a “agitação” de vários deputados, atirou mais uma provocação:

“Ainda há pouco batiam palmas, eu na quarta-feira passada vi-os foi bater os dentes, e não sei se era de frio… nem se não… (Manifestações de protesto.) Vocês hoje não batem os dentes como faz hoje oito dias!?”

O PCP também incentivou os operários da construção civil. Na noite do cerco, o deputado Octávio Pato falou de forma clara sobre a situação dos parlamentares: “A nossa estadia aqui faz parte do processo revolucionário português”. Luís Catarino, do MDP/CDE, era outro deputado que conseguia ver virtudes na atitude dos manifestantes. De forma algo rebuscada, descobriu um argumento para defender o cerco: “Se houver uma perspectiva coincidente entre um deputado retido no Palácio de São Bento e os trabalhadores que lá fora se manifestam, naturalmente que ele entende e aceita perfeitamente esta pequena contingência a que foi submetido”. Mesmo Alfredo Carvalho, do PS, dizia “não estar revoltado” por ter ficado “retido”.

Alguns deputados gostaram tanto da experiência que não se importaram de ficar por ali mesmo depois de serem libertados. No caso de Hermenegilda Pereira, do PCP, acrescia à ideologia uma razão prática. Um jornalista perguntou-lhe o que é que estava ainda a fazer nas escadarias do edifício e a deputada-operária respondeu: “Estou a ver se entre a malta descubro alguém conhecido do Barreiro que me dê uma boleia para casa, pois a esta hora já perdi o barco”. Se a encontrasse naquela altura, o tio-avô de Bruno de Carvalho gostaria seguramente de a ver apeada — seria uma muito pequena, mas muito saborosa, vingança.

Parte deste texto é uma adaptação do artigo “Deputados sem comida, sem cama – e sem saída”, publicado no Observador a 23 de maio de 2015.

Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda
“A Capital” de 13 de Novembro de 1975
“Diário de Notícias” de 13, 14 e 15 de Novembro de 1975
“Diário Popular” de 13 de Novembro de 1975
“Grande Reportagem” de 2 de Abril de 2005
“Jornal de Notícias” de 13 e 14 de Novembro de 1975
“Voz do Povo” de 18 Novembro de 1975