“Isto parece ficção científica e é surpreendente ver que está a tornar-se realidade. Na Europa, estamos todos em negação e a tentar sobreviver e lutar contra as mudanças que a tecnologia vai trazer”. As palavras são de Cristina Fonseca, cofundadora da Talkdesk, durante a apresentação da versão portuguesa do livro “Indústrias do Futuro”, de Alec Ross, um dos maiores especialistas americanos em inovação e que foi, durante quatro anos, consultor sénior para a Inovação da Secretária de Estado Hillary Clinton.

“A minha maior lição e surpresa foi perceber que os políticos chegavam, ao pé dos jovens, completamente perdidos” com os avanços tecnológicos, explicou Cristina na terça~feira, referindo-se ao momento em que Christine Lagarde contou, no Fórum Económico Mundial, que tinha jantado ao lado de um dos fundadores da Google e que este lhe tinha dito que os carros iam andar sozinhos nos próximos dez anos. “Estou perdida, o que é que posso fazer?”, partilhou, na altura, a diretora do FMI.

Isso levanta uma série de questões para as quais não tenho resposta, mas promove a colaboração [entre os vários poderes] e acho que essa é uma saída possível. Podemos não ter todas as respostas, mas temos de estar abertos à mudança. No final do dia, acabamos por discutir por que é que andamos todos aqui”, salientou Cristina Fonseca, uma das fundadoras da startup portuguesa que cria software para call centers.

Na terça-feira, numa das casas do empreendedorismo em Portugal, a Startup Lisboa, discutiu-se o que pode ser o futuro, mas também se fez um ponto de situação sobre onde estamos e para onde (achamos) que vamos. Hoje, já existem carros que andam sozinhos, robôs que produzem iPhones e que tomam conta de pessoas, máquinas que fazem diagnósticos médicos, tecnologia que programa células para destruir cancro ou traz de volta espécies que já se extinguiram.

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Se há alguma coisa que marca o tempo que estamos a viver não é a questão de oportunidade versus ameaça, porque isso foi sempre a dinâmica da humanidade. A verdade é que nunca como hoje foi tão paradoxal aquilo que estamos a viver. Alarga-se um campo infinito de possibilidades, mas as velhas e grandes questões da humanidade continuam sem ser resolvidas”, destacou Miguel Fontes, diretor executivo da Startup Lisboa.

Para Paulo Ribeiro, diretor de Unidade de Negócio da Actual Editora, “os desafios serão ao nível da segurança”. Os exemplos são vários. Começam com o blockchain (banco de dados que permite e guarda os registos de transações virtuais e que é a base das moedas virtuais), passam para a alegada intervenção russa na campanha de Hillary Clinton nas presidenciais americanas, para o FBI, que pagou mais de um milhão de dólares a hackers (piratas informáticos) para desbloquear o iPhone de um dos autores do atentado em San Bernardino (quando a Apple recusou fazê-lo ) ou para o ataque ao site de encontros amorosos Ashley Madison, que provocou divórcios e até suicídios. “É fácil, está tudo conectado”, notou Cristina.

Há muita gente que não está preparada para este virar da página. E depois assistimos a fenómenos como o dos Estados Unidos ou França, onde os presidentes e candidatos mais populistas podem assumir algum protagonismo, porque apelam a um público que não se revê nas atividades ligadas à inovação. O mundo está a mudar a uma velocidade muito rápida, que nos coloca desafios aos quais não estamos a conseguir dar a melhor resposta”, sublinhou Paulo Ribeiro.

Ao mesmo tempo, considerou Cristina Fonseca, a tecnologia está a ajudar a “mover-nos para uma sociedade e para um sistema mais transparente em que as pessoas se revoltam, mas também criam ferramentas para alimentar a transparência”.

Já Domingos Folque Guimarães, fundador da Academia de Código, acredita que está a acontecer “exatamente o contrário, com as fake news (notícias falsas) e alternative facts (factos alternativos)”, tão em voga na administração Trump.

“Daqui a cem anos acredito que vamos ter uma qualidade de vida imensamente maior. O problema é o caminho até lá. A sociedade não está preparada. A realidade política e social está muito afastada da realidade do mercado tecnológico. E a realidade é que, há dez anos, não prevíamos metade das coisas que estão a acontecer neste momento. Por isso, não tenhamos a ilusão de que temos algum controlo sobre a realidade”, notou o fundador da startup que ensina jovens, licenciados e sem trabalho, a programar.

“Se procurarmos uma solução na tecnologia, ela existe”

A cofundadora da Talkdesk, que deixou a empresa há cerca de um ano, regressou recentemente de um programa na Singularity University, em que o objetivo era juntar pessoas do mundo da ciência e dos negócios a perceber de que forma as mais recentes tecnologias podem ser utilizadas para resolver os maiores desafios da humanidade.

O Japão, por exemplo, está a investir muito em robótica na área dos cuidados de saúde, porque tem uma das populações mais envelhecidas do planeta. “Estão a investir em robôs para tomarem conta de pessoas. Quando pensamos em robôs, não podemos deixar de ficar assustados com o que volta e meia aparece nas notícias – que os robôs vão substituir as pessoas nos seus trabalhos. Há sítios, como no Japão, em que as fábricas de iPhones ‘contratam’ robôs em vez de contratar pessoas. Isso já está a acontecer”, sublinhou Cristina.

“Se nós procurarmos uma solução na tecnologia para a maioria destes problemas, ela existe”, acrescentou.

Alec Ross conta no livro que a Virgínia ocidental, zona onde nasceu e de grande atividade mineira, foi completamente transformada com a substituição da força humana pelas máquinas nas minas. É certo que os robôs são muito mais rentáveis do que as pessoas. “Trabalham 24 horas e não se queixam”, brincou Cristina. Mas, ao mesmo tempo, lançam “um grande debate político que liga a sociedade à tecnologia: o que é que as pessoas vão fazer?”, questionou o cofundador da Academia de Código.

“Normalmente, este debate é feito na base da ameaça do robô à destruição do emprego. No caso do Japão, a necessidade de robotização é apresentada com um pressuposto que não é habitual. A população vai ser tão envelhecida, tão necessitada de prestadores de cuidados que, se não houver uma intervenção massificada como aquela que a robotização permite, não haverá capacidade para cobrir todas as necessidades sociais que daí vão emergir”, observou Miguel Fontes.

“Não queremos aceitar que estas mudanças vão acontecer”

Se a robotização está a destruir muitos postos de trabalho também está, ao mesmo tempo, a criar outros altamente qualificados na indústria da robótica, sublinha o diretor da Startup Lisboa. “Não se pode pedir à tecnologia mais do que o que ela dá”, acrescentou.

O debate intensifica-se quando se pergunta se os robôs devem ou não pagar impostos. Se, por um lado, os impostos podem deixar fugir a inovação para fora da União Europeia, por outro – como defende Bill Gates – a automação vai libertar pessoas para um tipo de trabalho que as máquinas ainda não conseguem fazer, implicando uma requalificação profissional da população, que terá de ser feita, por sua vez, com recursos a impostos.

Há ainda questões de ética e de responsabilização na interação robô-humano. O Parlamento Europeu já discutiu o tópico e decidiu pedir à Comissão Europeia para avançar com legislação nesse sentido, dos carros autónomos (quem é responsável se um Tesla magoar – ou matar – alguém?), à possibilidade de aperfeiçoar humanos com recurso à tecnologia – algo que não está ao alcance do comum mortal. Aí a questão não está na tecnologia, diz Miguel Fontes.

“Está numa discussão política e ideológica, que é como nos vamos organizar enquanto sociedades, de modo a que esse tempo e a riqueza que vai ser acumulada por via dessa robotização se transfere para nós todos, comuns mortais”, referiu.

Se a globalização tem permitido que, em regiões como a Índia, milhões de pessoas estejam a sair de uma situação de pobreza extrema, também é verdade que a acumulação de riqueza nunca foi tão desigual.

“Só é possível aceitarmos as dinâmicas sociais que a robotização vai induzir se todos beneficiarmos enquanto cidadãos, da riqueza que vai ser gerada”, nota Miguel. “A pobreza tem sido, de forma geral, mal distribuída”, acrescentou Cristina. Um dos tópicos que se discute muito é o Universal Basic Income (rendimento básico universal), já defendido por Elon Musk, fundador do PayPal e da Tesla. Nos EUA e no Quénia está a ser feita uma experiência para perceber o que é que as pessoas fazem se tiverem dinheiro e tempo livre.

Há muitas pessoas que não se conseguem ver sem um trabalho e sem uma agenda mais ou menos imposta. Isto é problemático. Acho que estamos todos em negação e a não querer aceitar que estas mudanças vão acontecer e que até são benéficas de uma forma geral”, notou Cristina Fonseca.

Na China, na última década, cerca de 700 milhões de pessoas saíram da pobreza. São duas vezes os Estados Unidos. “Isto só é possível porque a tecnologia os tirou dessa situação. Vão ser criados muitos empregos, o que é preciso é uma requalificação das pessoas e de mentalidade, o que é difícil”, sublinhou a cofundadora da Talkdesk.

O maior paradoxo que estamos a viver é que os problemas são todos globais. Não faz sentido pensarmos à escala das fronteiras nacionais tudo o que enfrentamos, sejam elas mais estreitas ou mais alargadas. Necessitamos reforçar os mecanismos de governação a nível global e, no entanto, estamos a caminhar num sentido absolutamente inverso, no reforço de uma lógica dos mecanismos de decisão nacionais”, constatou Miguel Fontes. “Sentimos falta é de ‘alguéns’ que nos ajudem a integrar fragmentos de conhecimento e a dar alguma ordem na tal desordem”, acrescentou.

Mas estará a comunidade tecnológica disposta a entrar no campo da discussão política? A resposta ao desafio do diretor da Startup Lisboa veio de Cristina Fonseca: “A história tem provado que quando há um sistema que não funciona não se vai tentar mudar aquele sistema, constrói-se outro ao lado. Ninguém quer lidar com a máquina”.

Empresas numa “corrida de ratos”

Cristina confessa que voltou da Singularity University com a sensação de que as empresas não inovam muito. “A maioria das empresas está um bocadinho na corrida dos ratos, a tentar sobreviver, e não se estabelecem como empresas inovadoras”, nota, o que coloca o ecossistema “em desvantagem” porque não há pessoas “a pensar mais à frente”. “Temos pessoas a pensar no próximo mês e no próximo ano, mas não temos pessoas a pensar nos próximos dez anos”, notou.

Como o peru do Natal que é tratado e alimentado ao longo da vida até que chega a um ponto em que acha que a vida não lhe pode correr melhor. Mas acaba por ser morto, exemplifica.

Acreditamos que o nosso passado determina o futuro e isso não é verdade. Pouco a pouco, temos de ir incorporando alguma volatilidade na nossa vida, porque senão, quando vier o choque, este pode ser fatal”, observou.

Domingos Guimarães recuperou o caso, relatado no livro de Ross, da Bielorrússia e da Estónia quando saíram da União Soviética. Os dois países tinham o mesmo poder per capita. A Bielorrússia fechou-se, bloqueando a inovação enquanto a Estónia se abriu completamente. O resultado? Hoje o PIB per capita estónio é 15 vezes superior ao da altura da desagregação. Não tem empresas que valem centenas de milhares de dólares, mas tem o Skype, por exemplo.

Ainda na semana passada, a startup estónia Pipedrive, que desenvolve software de vendas na cloud (nuvem) e que angariou cerca de 31 milhões de euros em investimento, tem 30 mil clientes e emprega mais de 240 pessoas nos escritórios que tem em Tallin, na Estónia, e em Nova Iorque, anunciou que pretende abrir mais um em Lisboa e contratar 50 pessoas.

“O primeiro-ministro [em 1992, Mart Laar] tinha 32 anos e usou a tecnologia e inovação para fazer isso tudo”, sublinhou Cristina Fonseca. Domingos Guimarães rematou com um conselho: “Acho que este livro devia ser lido pela classe política portuguesa”.