“Nunca conheci quem tivesse levado porrada”, escreveu Fernando Pessoa na abertura do seu “Poema em Linha Recta”. Mas em “São Jorge”, a nova longa-metragem de Marco Martins, toda a gente leva porrada. Leva Jorge (Nuno Lopes), o protagonista, um pugilista, no ringue, dos outros pugilistas, e cá fora, da vida, porque tem dívidas e não as consegue pagar, e a mulher, imigrante brasileira (Mariana Nunes) ameaça voltar ao Brasil com o filho deles; levam a família e os vizinhos de Jorge, da crise que varre um país sob tutela da Troika e traz falências, carências, desemprego; levam os que devem e não conseguem pagar, dos brutamontes das firmas de cobranças, para uma das quais Jorge vai trabalhar, na tentativa de ganhar o suficiente para também pagar o que deve e ter o suficiente para alugar uma casa, reconquistar e mulher e manter a família unida. “São Jorge” só tem uma sequência de luta no ringue e uma de violência na rua. Mas tanto faz, porque de uma forma ou de outra, toda a gente anda batida pela austeridade.

[Veja o “trailer” de São Jorge]

Apesar de se passar em cheio durante a crise, “São Jorge” não é um filme “militante”, uma jeremiada neo-realeja serôdia, um choradinho de “mensagem” estriado de miserabilismo. A crise é, aqui, o motor de arranque da história dramática de um homem desesperado, que vai fazer um trabalho que lhe repugna — ser um matulão de punhos duros como pedra não significa que não se tenha consciência e escrúpulos –, para conseguir ganhar o único combate que lhe importa na vida e que tem que travar sozinho, contra a adversidade.

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E quanto mais Jorge se afadiga para evitar que o seu mundo desabe, mais se vai apercebendo do que se passa à sua volta e mais Marco Martins mostra, sempre no natural fluir da história, as circunstâncias e os efeitos da crise sobre as pessoas. Pessoas de carne e osso e não bonecos de cartão demonstrativos, porque “São Jorge”, rodado em Lisboa e nos bairros sociais da margem sul, misturando moradores com actores profissionais, trata e mostra a realidade com um à-vontade, uma justeza e um verismo muito raros no cinema português.

[Veja a entrevista com Marco Martins e Nuno Lopes no Festival de Veneza]

Evocando, na forma e no estilo, quer os “thrillers” de boxe do cinema clássico americano, quer o melhor cinema de realismo social que se fez na Europa nas década de 50 e 60, e os seus soturnos ambientes emocionais e visuais, Marco Martins rodou em digital para intensificar o efeito de realidade e transformar “São Jorge” num ofício de trevas anímico e cinematográfico. A noite manda no filme, que acompanha Jorge na sua marcha pelos baldios suburbanos, zonas industriais e ruas de uma Lisboa ensombrada, agreste e feia, e pelos labirintos tristes e degradados dos bairros sociais da outra banda.

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Há uma óbvia afinidade de “São Jorge” com “Alice”, que o realizador assinou em 2005, onde um pai (também interpretado por Nuno Lopes), palmilha uma Lisboa invernosa e indiferente, na busca obsessiva e solitária pela filha que desapareceu, e contra todas as probabilidades, acredita que irá encontrá-la. Tal como Jorge crê que não verá o filho desaparecer no outro lado do oceano.

[Veja a entrevista com a actriz Mariana Nunes]

Baptizado com o nome do santo da sua devoção, Jorge é uma bisarma vulnerável. O seu exterior corpulento esconde um interior de pião das nicas. Tão possante quanto ingénuo, Jorge é invectivado pelo treinador, pressionado pelo pai (um magnífico José Raposo), manipulado pela ex-mulher, destratado pelo patrão da firma de cobranças. Até Nelson, o filho (David Semedo, “descoberto” por Marco Martins num dos bairros onde filmou) vê mais longe do que ele, quando o avisa por meias palavras que a mãe está determinada a levá-lo com ela para o Brasil, e por mais que o pai se esforce, o mais certo é que isso irá acontecer.

O valor da interpretação de Nuno Lopes não está só no longo e duro treino que fez para ter o físico da personagem. Está também na maneira como transmite essa fragilidade de Jorge e nos convence dela. Olhamos-lhe para os olhos e o desamparo e a aflição que lemos neles desmentem o que os músculos e as mãos afirmam. É que não basta ter nome de santo e punhos de ferro para evitar que a vida nos mande ao tapete. Duro sem brutalidade, comovente sem pieguice, realista sem demagogia, “São Jorge” é um dos melhores filmes do ano.