Título: “O Carrinho de Linha Azul”
Autora: Anne Tyler
Editora: Editorial Presença
Páginas: 376

Anne Tyler conseguiu a proeza de escrever um romance de lombada gorda com uma família que não tem absolutamente nada de especial. É ela quem o diz, à página 178 de O Carrinho de Linha Azul: “Não havia nada de digno de nota nos Whitshank. Nenhum deles era famoso. Nenhum deles podia alegar ser possuidor de uma inteligência excecional. E, em termos de aparência física, eram completamente vulgares.”

Mas a vulgaridade, nesta história das famílias, já se sabe que é uma fachada. Uma aparência desmontada por séculos e séculos de literatura, resumida na famosa frase com que Tolstoi abre Anna Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

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E os Whitshank, na sua banalidade, são infelizes. Infelizes como todas as pessoas que estão vivas e por estarem vivas discutem, desiludem-se, envelhecem, mentem, perdem entes queridos. A sua história é contada por Anne Tyler (n. 1941) na senda dos romances familiares que fazem analepses e prolepses para acompanhar diferentes gerações (neste caso três). Ou, para usar a imagem do título, como um carrinho de linha que se vai desenrolando e revelando histórias de amor e de perseverança, mas também narrativas diferentes (e muito menos abonatórias) do que aquelas que os membros mais novos guardam na memória.

Finalista do Man Booker Prize 2015, o 20º (e talvez último) romance da autora norte-americana, vencedora de um Pulitzer e apelidada de cronista das vidas domésticas, arranca em julho de 2014 com os patriarcas da família a receberem um telefonema do filho mais novo, Denny, a dizer que é homossexual (na verdade não é). Logo ali são dadas várias pistas para a história de decadência e de meias verdades que se vai seguir: o roupão de banho e o tapete persa estão gastos e o próprio quarto, amplo e bonito, tem “o aspeto confortavelmente desgastado de um espaço cujos ocupantes há muito que tinham deixado de olhar por ele”.

Denny desliga e os pais não têm como contactá-lo. É o filho problemático e de comportamento errático que desistiu de estudar, engravidou uma rapariga quando ainda estava no secundário e, resumidamente, faz o que quer quando bem lhe apetece, sendo que lhe apetecem constantemente coisas muito diferentes. A ovelha negra da família.

A par de Denny há outros três filhos — duas raparigas e um rapaz — e muitos netos. Como nota uma delas, é o filho ausente que consome a atenção dos pais até à última gota, não deixando nada para os outros. É também o filho ausente que regressa, contra todas as expetativas, quando os pais começam a ter problemas relacionados com a idade: Abby (a mãe) começa a desaparecer, Red (o pai) tem um ataque cardíaco e já não ouve bem de um ouvido, embora continue a trabalhar na empresa de construção civil que herdou.

A história de decadência abordada no livro está invariavelmente relacionada com o envelhecimento, mas também com a casa de família que concentra grande parte da ação, ela própria envolvida numa mitologia que a escritora fará desmoronar. No dia em que os filhos dizem que a moradia é demasiado grande para os pais viverem lá sozinhos, Red responde:

“As casas precisam de seres humanos. (…) É claro, os humanos causam desgaste, pisos gastos, sanitas entupidas e assim, mas isso não é nada comparado com com o que acontece quando uma casa fica desabitada. É como se ficasse sem coração. Deteriora-se, afunda-se, começa a inclinar-se em direção ao chão. Juro-vos que basta-me olhar para a viga mestra de uma casa para saber se está habitada ou não.” (pág. 80/81)

Como mostra um dos vários flahsbacks do livro, essa mesma moradia foi construida e constantemente reparada pelo pai de Red, um carpinteiro de origens humildes que, personificando o chamado american dream, esperou e lutou toda a vida para conseguir cruzar o alpendre e aumentar o quarto agora com um aspeto desgastado. É nesse contraste entre o início de uma coisa e o seu fim, entre uma casa a encher-se e a esvaziar-se, que Anne Tyler concentra a maior força do seu romance (um romance que de resto se pode dizer convencional e sem grandes sobressaltos). Aí e na eterna dúvida existencialista resumida pela filha sábia da família: “porque razão é que acumulamos tanta coisa quando sabemos, logo na infância, como é que isto vai acabar?”.