Título: “Coração mais-que-perfeito”
Autor: Sérgio Godinho
Editora: Quetzal
Páginas: 246 pp

O pior nem é o que é mau. Tem os seus ridículos e os seus absurdos, mas acima de tudo este coração mais-que-perfeito é um romance mais que passado. É desenxabido, uma espécie de neorrealismo aburguesado, metido em T-zeros suburbanos em vez de coios agrícolas, com as mesmas mulheres corajosas, cultas, desprendidas e sofredoras dos velhos romances vermelhos.

Tem os seus ridículos, sim, e acima de todos eles a perturbadora cisma sexual. Há casos de sexo ou derivados pelo menos nas páginas 20, 22, 34, 77, 87-89, 99, 117, 118, 121, 133, 137-139, 157, 163, 165, 167, 170, não contando com as últimas páginas em que uma personagem “corta o sexo”, nem com a masturbação diária do mesmo homem. Há conversas marotas, muitas, algumas delas supinamente pedagógicas (“o teu tio é muito bom na cama”), há filosofia, se não de cordel, pelo menos de bordel (“Artur não acreditava sempre na simultaneidade do orgasmo e da ejaculação. Era isso um Homem?” Eis a pergunta que faltou a Aristóteles responder) e uns preciosismos de voyeur um tanto incómodos (“Dormiram as duas sem sede, embrulhadas uma na outra, no sofá e depois na cama, em parte despidas, em parte não, sem prestarem importância nem darem por isso”. Se elas não dão importância, porque é que lhe dá o autor?).

Gáudio ao leitor mais lúbrico: mesmo o maior interregno entre as referências a nádegas e sexo é forçado por um aborto à meia centena de páginas. Nessa primeira meia centena, aliás, já a personagem principal foi vítima de pedofilia, emigrou, arranjou um namorado, engravidou, soube da morte do rapaz e vai a caminho de um aborto. Aquilo que encheria várias vidas enche apenas o primeiro quarto do livro e os primeiros dezanove anos de vida de Eugénia, a heroína.

Ora, este é um dos maiores sinais de amadorismo no livro de Sérgio Godinho. Embora tenha alguns truques de contador de histórias, como o anúncio velado de um acontecimento importante (“mal sabiam” o que estava para vir), tem também o vício principiante de fugir aos próprios temas. Arrasta a personagem principal por uma sucessão de vidas – de jovem especial, grande leitora, a prostituta, a mulher de um actor louco e a doente – como quem precisa de novidade para ganhar interesse. Apesar de todas as situações da vida de Eugénia pedirem drama, nenhuma é tratada com densidade suficiente para aguentar o livro. A prostituta é irrelevante para a apaixonada e a apaixonada irrelevante para a rebelde de infância: as várias vidas estão desligadas umas das outras. A passagem de um caso grave – aborto, por exemplo – para outro (prostituição) menoriza os dois. Daí que o livro, mesmo com os grandes problemas que trata, seja pouco mais do que monótono. Os temas clássicos – actor que se confunde com a personagem representada, prostituição… – são repisados de tal maneira que não motivam mais do que generalidades e lugares-comuns.

É isto, então, que nos parece pior no livro. Mais do que os ridículos sexuais, ou a incompreensível litania de trocadilhos a pretexto do amor de uma personagem por eles, aborrece a banalidade. O estilo, à excepção de umas exortações à camarada fraterno (“Eugénia, fala de ti própria”), é claro, clarinho, sem-graça e as personagens seguem-lhes os passos. As mulheres são corajosas, rebeldes contra a autoridade, que questionam convenções e a existência de Deus, têm uma vida dura mas são independentes, capazes de se libertarem dos homens mas incapazes de se livrarem das descrições românticas à camarada Soeiro Pereira Gomes ou Alves Redol. Não há nenhuma ideia original, nada que não soe a um vago esquerdismo reformado, com peneiras de artista e quotidiano votado ao amor-livre. Conversas desinibidas entre mãe e filha, tia e sobrinha, trocas pacíficas de namorados e a inefável certeza de que os corações puros são rebeldes, leitores e descontraídos. Mesmo com um verniz moderno, fora da lavoura rural mas com trabalho em supermercados e jogos de computador; mesmo com isso, o tempo verbal é abusivo. Canções destas já nós ouvimos –assim, no pretérito perfeito.

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