Há cerca de um mês, o pão começou a desaparecer das portas das casas ali à volta da Rua Afonso V. Os habitantes de Vigia, em Vagos, distrito de Aveiro, comentavam entre si o sucedido mas como uns dias acontecia e outros não, foram deixando andar. Na última semana, a dona Cremilda não encontrou o seu pão preso na maçaneta nem um único dia da semana. O padeiro foi confrontado. É um homem da confiança de todos e garantiu que continuava a fazer as suas rondas e a deixar as encomendas. Então os habitantes decidiram revezar-se… na vigia. Era Manuel que lhes roubava o pão. O inquilino-fantasma do número 57.

No sábado, o vulto que se movia apenas de noite, que roubava pão e era visto a apanhar laranjas da janela, só com o braço de fora, ficou conhecido em todo o país. Manuel Fernandes, 24 anos, que terá vivido entre Vagos, Quinta do Gato, Ílhavo e Aveiro está na prisão, depois de o Tribunal de Viana do Castelo ter decretado a medida de coação mais pesada, prisão preventiva. É acusado do rapto agravado de Mariana, uma rapariga de 13 anos de Vila Chã, Ponte Lima.

Os vizinhos nunca fizeram nada quanto ao pão, por pena, até porque não sabiam nada sobre pessoa que estaria a habitar aquela casa.

“Ele não é de cá, nunca o tínhamos visto, só o víamos durante este último mês, sempre à noite. E esta semana uma miúda franzininha saiu com ele à noite uma ou duas vezes”, conta Joaquim Júnior, que vive em frente ao 57, ao Observador.

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O frenesim na rua “parecia a feira da Vigia”, diz Rosa, que, como Cremilda e Joaquim, vive nas casas em frente à casa onde Manuel viveu pelo menos na última semana. “A Polícia Judiciária já chegou na quinta à noite, ficaram aí a dormir e na sexta de manhã a miúda saiu de casa para falar com eles, não parecia nervosa nem nada”, acrescentam.

Os três vizinhos acham estranho Manuel estar acusado de rapto até porque Mariana estava demasiado calma e ainda o tentou encobrir. Tal como relataram outras pessoas aos jornalistas presentes no local, Mariana terá dito às autoridades que não tinha sido obrigada nem a vir até Vagos nem a ficar dentro de casa. Quando saiu para vir ter com a polícia, terá ainda tentado encobrir Manuel, dizendo que o jovem não se encontrava em casa, que ela estava sozinha. “Isto aconteceu por volta das 9h30 da manhã. Ela saiu logo daqui, num carro da polícia, mas ele só se entregou por volta das 11 e tal e ofereceu bastante resistência”, conta Joaquim, que trabalhou 20 anos em França como camionista e depois voltou para a terra para abrir um restaurante.

Nas terras pequenas, é difícil um homem como Manuel, com quase um metro e noventa, passar despercebido e ali nunca ninguém antes o tinha visto. Quem é conhecido é o padrasto do jovem, Augusto Pimenta, que trabalha na construção civil na zona. Apesar de ter uma casa que é sua, esta onde estavam Manuel e Mariana, Augusto está a viver em Calvão, Vagos, com familiares, porque está a divorciar-se da mãe de Manuel e a casa que era dos dois possivelmente será vendida. Mas em Calvão conhecem o nome mas ninguém sabe onde ele mora nem se ainda está por aqui.

A família tem uma história triste.

Uma tragédia levou o menino dos pais e Augusto nunca mais foi o mesmo. Por acidente, o menino bebeu herbicida deixado numas terras perto da casa dos pais e morreu. Augusto começou então a beber demasiado e, desde então, tem andado dentro e fora da prisão.

Joaquim, o vizinho camionista, diz-nos que ainda há pouco o tempo viu Augusto, de regresso ao trabalho. “Ele é um bom trabalhador, foi ele que construiu a casa”, diz o ex-camionista. A casa onde Manuel foi preso tem uma fachada em pedra e uma escadaria até à porta, e é uma das mais vistosas do lugar. Manuel, contudo, não tinha a chave e terá entrado por uma janela.

“A casa estava desabitada mas eles instalaram luz e televisão”, conta Joaquim, informação que lhe terá sido fornecida por um agente da Polícia Judiciária. As condições em Manuel e Mariana viveram esta semana também não terão sido as melhores. “Dizem que há imensa roupa suja por todo o lado e loiça também”, acrescenta.

Loiro, de olhos azuis, modelo e ator em França

Não foi com Manuel Fernandes que Mariana saiu de casa para se encontrar. Segundo as autoridades, Manuel mantinha, na rede social Facebook, pelo menos um perfil falso com o qual aliciava jovens raparigas e as convencia a encontrarem-se com ele. Para Mariana ele era Dinis Mendes, um jovem com menos dos que os 24 anos que Manuel tem, de cabelo loiro, olhos verdes, ator e modelo, residente em Paris mas originalmente português.

Na manhã de segunda-feira, Mariana saiu de casa para ir para a escola mas nunca chegou a aparecer nas aulas. O alerta foi dado pela família logo nesse dia, pelas oito da noite, e as autoridades foram reconstituindo os passos da menor. Em vez de continuar até à escola, Mariana terá parado no centro de Ponte de Lima de onde terá seguido para Braga de autocarro e, daí, apanhado um comboio para o Porto. Da estação de Campanhã terá seguido para Aveiro, onde era esperada por Manuel. Segundo a agência de notícias Lusa, que cita fontes da Polícia Judiciária, foi o sinal de telemóvel da jovem que os terá levado a encontrar a casa onde ela estava. No Porto, porém, o sinal foi interrompido e só foi detetado de novo já na quinta-feira, quando Mariana terá ficado a falar com amigos, através da internet, até de madrugada, a partir da zona de Vagos.

Gil Carvalho, diretor da Polícia Judiciária de Braga, disse que o detido “tem um perfil típico de um predador sexual através da Internet e das redes sociais” e que o caso de Mariana ajudou a consolidar as suspeitas das autoridades de que Manuel Fernandes tenha tentado encontrar-se com pelo menos mais seis jovens. Mas “muitas outras situações, pensamos nós, poderão ainda vir a ser identificadas”, acrescentou o responsável aos jornalistas, na sexta-feira, depois do interrogatório a que Manuel foi sujeito nas instalações da PJ.

Este modus operandi não é novo. Só em 2016, foram vários os casos que chegaram a público dando conta de homens que utilizam a Internet com a intenção de abusarem sexualmente de menores. Um homem de Águeda foi preso pela Polícia Judiciária em junho do ano passado por pedir a jovens rapazes que lhe enviassem vídeos de cariz sexual. Em fevereiro, mais um caso de um homem que se fazia passar uma jovem modelo bem-sucedida para aliciar outras jovens a enviar fotos e vídeos em poses sexuais.

É por isso que as autoridades não se cansam de pedir aos pais que tenham atenção às “amizades” que os filhos mantém nas redes sociais aconselhando que o acesso à Internet seja supervisionado e, ao jovens que não aceitem pedidos de amizade desconhecidos, nem mantenham conversas em chats com pessoas com quem já não sejam amigos na vida real.

“O mãos-leves, toda a gente sabia que era marado mas não sabíamos disso das miúdas”

Manuel terá vivido sempre em localidades nos arredores de Aveiro mas a família é de Quinta do Torto, perto de Quinta do Gato, em Aveiro. No largo da Igreja na Rua de São Braz, uma igreja com uma bela e aparentemente renovada fachada em azulejo, estão alguns jovens, todos mais ou menos na idade de Manuel. Aceitam dar os nomes próprios mas preferem não dizer de onde são nem os nomes das suas famílias porque alguns dos membros da família de Manuel “já levantaram problemas aqui na zona”.

Todos conhecem Manuel – “o mãos-leves”, ou “o escadote”. Segundo Xico, Manuel “nunca pareceu muito normal”, e, que ele se lembre, o jovem agora suspeito de rapto “não frequentou nenhuma escola na zona”. A família “é toda muito problemática”, diz um outro jovem, que dá pelo nome de António.

Manuel terá aparecido aqui, vindo ninguém sabe de onde, há uns seis anos. Foi quando os rapazes o começaram a ver. Apesar de não ter cadastro criminal, já era conhecido por pequenos assaltos. Em 2015 assaltou a Igreja, a Junta de Freguesia e uma pastelaria. “Ninguém apresentou queixa porque ele não parecia muito normal”, diz António. O padre da freguesia, que entretanto já não está cá, pediu mesmo às autoridades que não o prendessem quando ele assaltou a Igreja. Já a avó queria o contrário e “foi a primeira a pedir que o prendessem”, diz Xico. Os outros jovens concordam com gestos de cabeça. Estão à espera dos jogos de futebol de hoje e vão bebendo cervejas no largo.

“Ele andava mais de noite do que de dia, não falava muito. Às vezes sentava-se na paragem de autocarro horas a fio e ia falando com quem lá estava, mas de resto andava sempre de bicicleta, de um lado para outro, de mochila às costas. Tinha um ar alucinado mas nunca bebia álcool, que eu tenha visto”, acrescenta Xico.

Quando perguntamos se sabiam que Manuel está acusado do crime de rapto — e que a Polícia Judiciária está a investigar pelo menos seis suspeitas em que terá aliciado jovens menores pelo Facebook — o grupo reage com surpresa: “Seis?!”. Nunca o viram com raparigas, só uma namorada. Nenhum deles conhecia essa faceta do Manuel, por aqui só era conhecido pelos roubos e pelo comportamento estranho. “O que se dizia por aqui é que a namorada o obrigada a roubar, mas pode ser só maldade, um boato”, acrescenta António: “O mãos-leves, toda a gente sabia que era marado mas não sabíamos disso das miúdas”.

Os rapazes dão-nos a morada para a casa da família mas ninguém responde quando batemos à porta. As janelas estão todas fechadas. Mesmo que Mariana tenha dito às autoridades que não foi raptada por Manuel, e mesmo que tenha consentido em manter relações com ele, isso não servirá como atenuante em Tribunal dado que a menor tem menos de 14 anos, idade da autodeterminação sexual em Portugal. Por agora não há indícios de abusos mas, depois de conduzidos os devidos exames médicos, as acusações que recaem sobre Manuel Fernandes podem agravar-se para incluir também esse delito.