“Raios o partam, este Camané!”.

A expressão de alguém na fila à frente da minha este sábado à noite no S. Luiz provocou-me duas sensações: uma de memórias; a outra de ‘era mesmo isto que me apetecia dizer!’.

Então vamos lá.

Primeiro aviso: isto não é uma crítica de um concerto. É uma declaração de fanatismo. De devoção crónica.

Em 2008 estava com os meus pais no Pavilhão Atlântico no concerto dos 45 anos de carreira de Carlos do Carmo. Ali nas bancadas, à esquerda do palco, o meu pai aplaudia o fadista de que toda a vida gostara, à espera de uma das convidadas, Mariza, por quem também já se apaixonara. Até que um rapaz tímido e baixinho sobe ao palco e faz o sr. Lourenço dizer: “Raios o partam, roubou o espetáculo! Foi tudo dele”.

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Naquela noite de boas memórias e tanta saudade, perdão Carlos, mas o Camané teve mesmo um happening. Mais um, dos muitos que já lhe vi. O último foi ontem.

Essa é a sua verdadeira dimensão. A de conseguir reinventar-se a cada concerto. Tenha convidados em palco ou seja ele o convidado. Actue numa pequena sala ou num grande pavilhão. Do Coliseu ao CCB, do Museu do Fado às pequenas salas do país. Até ontem no S. Luiz. Quando surge em palco, quase como que a medo, baixando a cabeça a venerar quem o ouve, é apenas um homem pequeno e acabrunhado. Mas quando se faz ouvir, quando começa a cantar, raios o partam, agiganta-se. Aquilo é mesmo tudo dele, só ele conta.

Passam apenas cinco minutos depois da hora marcada. A Orquestra Metropolitana de Lisboa já está no palco. Apagam-se as luzes. E uma voz, apenas uma voz, domina todo a sala do S. Luiz. Camané canta, algures, a capella, “Este Silêncio”. Há arrepios e a tal expressão da minha vizinha da frente.

Depois, sem parar, raios o partam, são duas horas assim, a arrebatar os fãs de sempre e muitos novos, a ver pela quantidade de estrangeiros na sala esgotada. Desfia sucessos antigos só com José Manuel Neto na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença na viola e Paulo Paz no contrabaixo; mistura-os com fados do seu último álbum, “Infinito Presente”, seguindo a batuta do maestro Cesário Costa; surpreende com dois tangos ‘arranjados’ por Daniel Schvetz; entoa só com o piano de Filipe Raposo uma canção de Jobim; e ousa até cantar Amália e o seu inesquecível “Abandono”. Mas o melhor, o melhor mesmo foi o ‘bis’ de “Sei de um Rio”, com o coro Ricercare, que o acompanhou também no “Havemos de Nos Ver Outra Vez” de Teresa Muge, que decide acabar também a capella.

E? Perguntarão vocês. E é que raios o partam! Porque o pequeno cantor que temos à frente é sempre enorme quando canta. Tem um vozeirão que apaga tudo, tipo eucalipto. Apaga músicos, apaga coro, apaga Orquestra. Só ele se ouve.

Raios te partam Camané! És grande!

(fica uma crítica, só esta: podíamos ter tido mais Orquestra, em mais músicas, soube a pouco; pronto, está dito!)

Camané e Orquestra Metropolitana de Lisboa, de 9 a 12 de março no Teatro São Luiz em Lisboa. Quinta a sábado às 21h, domingo às 17h30.