Larry Crane chegou a Portland em 1993. Foi para o Noroeste americano que “espera de todos os que queriam fazer diferente”, lembra. Era um abrigo para gente dada às coisas do punk, não necessariamente os acordes e a distorção mas a ideia do “faz tu mesmo” com os olhos postos no fim do milénio. Era isso que Crane queria e foi isso que também encontrou em Elliott Smith, quando o viu a tocar com os Heatmiser: “Primeiro vi-o com a banda da qual ele fazia parte, uma coisa meio punk, meio esquisita, mas depois vi-o sozinho no palco. O que era aquilo… ainda hoje me pergunto, o que era aquilo, como é que aquele tipo fazia a música que fazia?“. Dez anos mais tarde, Larry recebia a notícia da morte de Elliott Smith, dez dias antes da data combinada para terminar um novo álbum, que viria a ser From a Basement on the Hill (2004): “Ainda é difícil… Fiquei com as gravações, tornei-me uma espécie de representante dele mas a verdade é que isso vale muito pouco”.
Março de 2017, o mês escolhido para reeditar Either/Or, aquele disco que devemos sempre mostrar a alguém que quer conhecer Elliott Smith e/ou ter uma surpresa na vida. Se for possível juntar as duas coisas, perfeito. Ora bem, tudo isto acontece neste março porque o álbum foi originalmente lançado em fevereiro de 1997. 20 anos, data redonda, a melhor das razões para regressar ao terceiro disco de Smith, o último editado de forma independente (seguir-se-ia um contrato com a DreamWorks) e um daqueles que parece inultrapassável. A voz curta de Elliott Smith a tomar conta de uma lista interminável de demónios — uma família pouco funcional, uma padrasto dado a abusos e violência, a adolescência que lhe mostrou drogas, álcool e uma boa dose de angústias sociais. “Ele podia ser o tipo mais alegre, espontâneo e amigo. Podia mesmo. Mas também era dado às suas misérias, a momentos de desespero, sempre envolvido em filosofias, as mesmas que colocava nas canções”, lembra Larry Crane.
[ouça aqui a reedição de “Either/Or”:]
A isto tudo, Elliott juntava o que mais gostava de ouvir na guitarra que tocava com brilho de génio — “ele passava horas a praticar, trabalhava, trabalhava, como se fosse um desportista de alta competição”, diz-nos Crane. Bob Dylan e os Kinks, Nick Drake e Alex Chilton mais as maravilhas dos Big Star. Canções, amigos, Elliott Smith queria fazer canções que contassem histórias e aliviassem marcas de maus dias. Gostava de palavras, de as trabalhar e de lhes dar a volta. Era um herói sobretudo acústico mas até na mais tranquila das baladas o homem entrava num curto circuito emocional. Either/Or é um espelho perfeito de tudo isto.
Larry esteve lá quando o disco aconteceu, quando Elliott Smith o gravou. Melhor — antes de tudo isto, Crane ouviu as canções em formato demo:
“Ainda nem conhecia bem o álbum anterior dele mas ouvi aquela primeira cassete com os temas de Either/Or e a primeira coisa que pensei foi que aquele génio não pode ficar perdido na história. O negócio da música ignora facilmente pessoas como esta. Arte. Aquilo era arte e eu precisava fazer alguma coisa sobre isso. Agora, às vezes falam num novo Elliott Smith mas continuo à espera”.
E fez, claro que fez. Foi ele o engenheiro de som destacado para gravar Either/Or. Foi Larry o homem dos botões e dos cabos, das dicas e dos truques de som, da companhia, dos desabafos e dos segredos. E a relação de Larry Crane com Elliott Smith ia bem para lá de um horário de trabalho. “Lembro-me de em tempos ter ficado amigo de Joanna Bolme. A Joanna era uma grande, grande amiga do Elliott e levava-o para todo o lado. Ficámos também amigos, no meio de festas deste e daquele, de pessoas que nem sabíamos bem quem eram. O Elliott tinha amigos. Não tinha muitos mas tinha-os a sério. Tive essa sorte.”
[“Between the Bars”, do álbum “Either/Or”:]
Smith nasceu em Omaha, Nebraska, em 1969, mas os anos de infância e primeiros tempos de adolescência passou-os no Texas, depois do divórcio dos pais. Colecionou histórias tristes e levou-as mais tarde para as canções: da relação pouco frutuosa com a religião ao padrasto, que chegou a acusar de abusos sexuais. Mudou-se aos 14 para Portland, onde vivia o pai, um psiquiatra. Foi ele quem lhe deu a primeira guitarra, foi por Portland que decidiu mudar de nome — de Steven para Elliott –, foi pelo Oregon que descobriu o rock’n’roll, as drogas e o álcool. Das bandas passou para canções a solo, tinha o carimbo óbvio dos noventas mas, ao mesmo tempo, mostrava a visão criativa de alguém isolado do tempo e do espaço. Atirou-se aos discos primeiro com Roman Candle (1994), depois com Elliott Smith (1995).
“Tudo o que lhe foi acontecendo fez com que ele tivesse, ao mesmo tempo, confiança e insegurança. Lutava com essas duas coisas e também o fazia nas canções e no estúdio”, conta Larry Crane. Sabia o que queria e como queria, pedia poucas dicas mas nunca era indelicado se calhava em recusar ajuda. Sabia tocar muitos instrumentos mas para a voz insistia muitas vezes em “fazer overdubs, duplicava ou triplicava a voz, não tanto pela força que isso podia dar ao som mas mais pelo efeito sombrio que lhe atribuía”. Este era o mesmo Elliott que, ainda assim, diz Larry, “me disse que não queria fazer isso na canção ‘Miss Misery’, depois de eu o ter sugerido”, recorda Larry. “Acho que ele tinha razão, ficou melhor assim.”
“Miss Misery” não faz parte de Either/Or, surgiu depois de Gus Van Sant querer usar “Between Bars” no filme “O Bom Rebelde”: “Ele escreveu depois essa canção de propósito para o filme. Foi nomeado para os Óscares, perdeu para ‘My Heart Will Go On’, de ‘Titanic’, cantada pela Céline Dion, acho que toda a gente conhece essa”.
Para a nova edição de Either/Or, Larry Crane quis fazer duas coisas: “Primeiro, quis melhorar um pouco o som, porque há 20 anos os recursos eram outros, hoje podemos fazer mais e melhor nesse aspeto. Depois, queria que o disco tivesse notas, tivesse referências ao que aconteceu, como foi feito, quem fez o disco com o Elliott, onde foi gravado, essas coisas”. Larry faz questão de dizer que “o disco não foi remisturado, apenas melhorámos a qualidade do som, apenas isso. Mas as vozes, as guitarras e tudo o resto estão como o Elliott quis que estivessem, não mexemos nisso”.
O que há de novo nesta versão de aniversário de Either/Or são canções que muitos nunca ouviram ou versões raras. Nada que tenha sido realmente escolhido por Larry mas tem sido ele o guardião de um arquivo que ainda tem mais por mostrar: “As decisões são todas dos pais do Elliott, é a família dele que diz sim ou não. Eu sou uma espécie de funcionário com um voto de qualidade, algo assim”. E este voto de qualidade permitiu a Larry sugerir gravações que conseguem revelar um pouco mais daquilo que Elliott Smith era no estúdio. “Ele era muito divertido, havia sempre muita coisa a acontecer. Há aqui gravações que mostram isso, têm ruído de fundo, gargalhadas, pessoas a falar, coisas que nem sei bem identificar mas que dão algo extra a quem ouve.”
Depois de Either/Or, Elliott Smith gravou XO e Figure 8 para a DreamWorks. Larry Crane diz que “nada o mudou, nem o contrato com uma grande editora, nem a nomeação para o Óscar, nada. Ficou muito mais conhecido, é verdade, mas continuou a fazer o mesmo, com mais dinheiro, mais tempo, mais gente, com arranjadores excelentes, instrumentistas que fizeram a diferença, co-produtores de muito bom gosto”. From a Basement on the Hill era o álbum que estava praticamente pronto a 21 de outubro de 2003. Elliott Smith morreu nesse dia, aos 34 anos, vítima de dois golpes profundos de uma faca no peito. Estava em casa, em Los Angeles, com a namorada, Jennifer Chiba. terão discutido, Elliott ameaçou matar-se, Chiba terá ignorado até ter visto o músico já fatalmente ferido. “Sim, há quem fale que não foi suicídio. E sim, ele já tinha feito ameaças do mesmo género antes. Isso realmente interessa agora? Parece-me tudo muito exagerado. Sei que ele morreu, é tão triste que não preciso saber mais. E, apesar de muita gente o citar como influência… bom, nunca mais vi ninguém assim. Nunca mais ouvi ninguém assim.”