O Governo português conseguiu acabar o ano de 2016 com um défice de 2,1%, ultrapassando mesmo as suas melhores perspetivas e as previsões das instituições internacionais. “Uma bofetada sem mão”, atirou Carlos César, líder parlamentar do PS, para todos os que alguma vez duvidaram. Os socialistas fizeram a festa, lançaram os foguetes e apanharam as canas. Mas foram os únicos. À esquerda e à direita todos questionam o caminho percorrido por António Costa: foi um truque de ilusionismo, clamam PSD e CDS; foi conseguido à custa do desenvolvimento do país, concordam Bloco e PCP, num raro caso de unanimidade. O défice mais baixo da história da democracia não convence nem adversários, nem parceiros parlamentares. Um número é um número, mas todos olham de forma diferente para estes 2,1%.

Sociais-democratas e democratas-cristãos ainda ensaiaram um discurso elogioso: sim, a redução do défice é um dado inegavelmente positivo. Os comunistas até acompanham este ponto, mas nem querem ouvir de Bruxelas e das “imposições” da Zona Euro. Bloquistas, idem. O rol de críticas é extenso.

PSD. Estes 2,1% são uma “habilidade”

Em declarações aos jornalistas no Parlamento, o deputado do PSD Duarte Pacheco definiu o tom: a “redução do défice foi conseguido com habilidades“, através da “degradação dos serviços públicos”, do “esmagamento do investimento público”, seguindo um “caminho errado e insustentável“.

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“Esta redução do défice foi conseguida através de medidas extraordinárias e não sustentáveis”, ajuda a concretizar o social-democrata António Leitão Amaro, em declarações ao Observador. O deputado do PSD ajuda a fazer as contas: sem medidas que o PSD classifica como extraordinárias, como as receitas arrecadadas com o Programa Especial de Redução do Endividamento ao Estado (PERES), a devolução de juros pagos pelos empréstimos europeus, as cativações nos serviços do Estado e “o corte brutal no investimento público”, o défice acabaria acima dos 2,5%.

E tudo isto, continua o social-democrata, acompanhado por uma “aumento da despesa corrente no curto prazo”, “favorecendo alguns grupos de população”, apostando no “aumento de impostos indiretos”, com uma “degradação dos serviços públicos” e uma receita puramente “imediatista”, que culminou no “aumento da dívida pública”. “O caminho não é este. No longo prazo, o país precisa de uma forma mais saudável de consolidação orçamental”, remata Leitão Amaro.

CDS. Estes 2,1% foram um “caminho duvidoso”

Cecília Meireles, do CDS, acompanha as críticas do social-democrata. Em declarações ao Observador, a deputada democrata-cristã repete as mesmas observações: a redução do défice foi conseguida à custa de medidas “irrepetíveis”; as “cativações” e o “corte do investimento na ordem dos 10%” deixaram os “serviços públicos em rutura”; o PERES “foi vendido como uma medida que ia ajudar a economia, mas parece que serviu para ajudar reduzir o défice”; a “reativação de ativos vai ter repercussões em 2018 e nos anos seguintes e é na prática uma borla fiscal para grandes empresas, como a EDP”; e o “aumento de impostos indiretos tem de ter um fim”, resume.

Todos os caminhos que não são sustentáveis são duvidosos“, defende Cecília Meireles. A menos que o Governo escolha um caminho diferente, necessariamente mais “seguro e mais cauteloso”, com reformas verdadeiramente estruturais, “o país vai andar sempre neste ioiô. Recordo que o slogan défice mais baixo da história da democracia portuguesa já tinha sido usado pelo Governo de José Sócrates“, lembra a deputada do CDS.

Bloco. Estes 2,1% são para “satisfazer um capricho” de Bruxelas

Neste ponto, e num estranho caso de coincidência de opiniões, as posições de PSD, CDS e Bloco de Esquerda tocam-se num ponto: o défice foi conseguido à custa de falta de investimento. “Este défice de 2,1% é feito à custa de despesa de dinheiro público que não está a ser gasto no Serviço Nacional de Saúde, nas escolas que precisam de investimento, no investimento público. O problema de Portugal não é de contas públicas, é de falta de investimento, degradação dos serviços públicos, falta de dinâmica na economia”, afirmou Mariana Mortágua aos jornalistas no Parlamento.

A deputada bloquista acabaria por reforçar uma ideia que o Bloco de Esquerda vem defendendo há muito: o Governo socialista quer ser mais papista do que o papa. Ou, noutras palavras, o Executivo de António Costa quer provar que não é apenas um bom aluno, mas o melhor aluno de que o comissário europeu dos Assuntos Económicos, Pierre Moscovici falou. Mariana Mortágua é contra essa estratégia. “Um défice de 2,1%, abaixo do que é a regra genérica de Bruxelas que são 3%, abaixo do que estava previsto pelo Governo no Orçamento do Estado, não é mais do que uma meta para satisfazer um capricho da Comissão Europeia e para Bruxelas ver”.

PCP. Apesar destes 2,1%, “há mais vida além do défice”

Para os comunistas, é verdade que existe “uma trajetória positiva de consolidação das contas públicas”, concede Paulo Sá, em declarações ao Observador. Mas o Governo teima em não perceber que tem de haver “mais vida além do défice”. “Não podemos desligar este resultado das condições em que foi obtido, sobretudo no que diz respeito à redução significativa do investimento público”, argumenta o comunista, lembrando que sem um investimento público sólido é difícil alavancar o investimento privado.

Além disso, continua Paulo Sá, esta meta do défice impôs, no entender do PCP, um “ritmo insuficiente de reposição de rendimentos”. Para o deputado, “o défice não pode ser o alfa e ómega da política. O país tem de ter prioridades e a prioridade é garantir investimento público e privado”.

Mas há mais, na sua opinião: se a trajetória de redução do défice é relativamente positiva, a dívida continua a ter um “valor excessivo e insustentável”. Para o comunista algarvio, “o foco do Governo está no défice, mas a dívida continua com níveis elevadíssimos. Não pode ser posta debaixo do tapete. O problema não se resolve com micro-soluções. Portugal tem um excedente comercial de 4 mil milhões de euros que são engolidos pelos juros da dívida [8 mil milhões de euros]. É urgente uma renegociação da dívida nos seus prazos, juros e montantes”, critica Paulo Sá.

“Há anos que andamos nisto”, diz o parlamentar do PCP. O Governo socialista até pode conseguir a façanha de alcançar a meta de 1,6% do PIB em 2017, “mas vai ser à custa de muita coisa”, conclui.

“Não há milagres, nem habilidades. Há um trabalho muito, muito intenso”

PS. Estes 2,1% são um sucesso, celebram os socialistas. Sozinhos

Indiferente às críticas, os socialistas vão repetindo o lema transformado em mantra: este é “o maior défice da história da democracia”. Mário Centeno, num discurso em tom vitorioso com críticas à direita e a instituições internacionais, na tarde desta sexta-feira, garantiu:

Não há milagres, nem habilidades. Há um trabalho muito, muito intenso.”

Para António Costa, de resto, esta foi “a prova que havia uma alternativa política, que produz melhores resultados”. Sorridente, o primeiro-ministro celebrou: “Não fomos além do que aquilo que propúnhamos ir, cumprimos com rigor as projeções que tínhamos feito e que muitos consideravam impossíveis. Os preconceitos têm pouca adesão à realidade“.

Antes, no Parlamento, já Carlos César, presidente e líder parlamentar do PS, tinha ensaiado o mesmo discurso, sem esquecer os adversários: “Pode dizer-se que é uma bofetada sem mão a alguns analistas e decisores políticos externos, como, por exemplo, ainda recentemente, o presidente do Eurogrupo [Jeroem Dijsselbloem]. É sobretudo a prova de que é possível associar uma política de responsabilidade social, com melhoria de rendimento, sem agravamento da carga fiscal e promotora da capitalização das empresas e do aumento do investimento, compatibilizando-a com uma linha de responsabilidade financeira na gestão das contas públicas”.

Em declarações ao Observador, João Galamba, deputado e porta-voz do PS, rebate as críticas que PSD, CDS, BE e PCP dispararam contra o Governo: ao contrário do que dizem adversários e parceiros parlamentares, a redução do défice foi conseguida através “de um controlo rigoroso da execução orçamental” e “do melhor semestre na economia nos últimos sete anos”.

Sobre as críticas, o socialista propõe-se a rebater uma a uma. Primeiro, as medidas extraordinárias ou de efeito não recorrente, conhecidas como medidas one off. Galamba lembra que se é verdade que houve medidas que ajudaram a melhorar o défice, também existiram medidas que pioraram as contas. “Segundo a Comissão Europeia”, cita o socialista, “as medidas one off tiveram um efeito líquido de 0,25% na redução do défice”.

Quanto às cativações, o deputado socialista garante que “não existe um desvio anormal” em relação a anos anteriores. O que existiu, de facto, argumenta, foram “cativações seletivas e rigorosos” em serviços do Estado cuja derrapagem na despesa era recorrente.

João Galamba defende ainda que a ideia de que a meta do défice foi atingida à custa da redução do investimento é uma fantasia. “Em relação ao estimado no relatório inicial do Orçamento do Estado, gastámos menos 4 décimas no investimento público. Mas perdemos 0,4% do PIB em ‘receita de capital’ e outros 0,4% em ‘outra receita corrente’. No total, menos 8 décimas do PIB. Basta metade serem menos fundos europeus para o argumento de que o défice foi atingido a custa da redução do investimento público cair por terra”, defende o socialista.

O deputado reconhece, ainda assim, que os níveis de investimento público estão aquém do desejado. O mesmo serve para o nível da dívida. Neste ponto, Galamba lembra que existiram três fatores que impediram que a dívida acompanhasse a redução do défice: “A recapitalização da Caixa Geral de Depósitos, a resolução do Banif e a não venda do Novo Banco”. E, mesmo com o PS isolado no otimista, o socialista mantém-se confiante: a trajetória da redução do défice é “sustentável” e vai prosseguir. O futuro dirá quem tem razão. Aqui, o Observador dá algumas pistas e explica como é que se chegou a este défice.

Como se chegou ao défice mais baixo em democracia?