Portugal chega ao final do ano com um défice abaixo dos 3% e tem quase garantida a saída do Procedimento por Défices Excessivos. O Governo consegue uma vitória interna e externa baixando o défice para 2,06%, com o apoio de dois partidos que são historicamente contra o que chama de “ditadura do défice”. Vitória da gestão responsável e da política económica deste governo, como clama Mário Centeno, ou fruto de uma estratégia insustentável, como diz a oposição? Vamos olhar para os números.

Há várias questões ainda por esclarecer, mas os números dados a conhecer esta sexta-feira pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) já permitem conhecer em parte o que realmente aconteceu de diferente daquilo que o Governo esperava quando fez o Orçamento do Estado para 2016, apresentado no início de fevereiro, no que às contas públicas diz respeito .

Queda da receita fiscal, mesmo com perdão fiscal

A receita é fundamental em qualquer orçamento e o ano não começou bem para o Governo. As previsões de receita foram consideradas otimistas — algo que foi prontamente contestado pelo Governo–, em parte porque o crescimento económico que o Governo esperava também era considerado otimista — algo que o Governo também contestou.

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Mas no final do ano, a verdade é que a economia cresceu mesmo menos que o previsto pelo Governo, apenas 1,4%, quatro décimas abaixo dos 1,8% esperados no início do ano. O resultado final notou-se, e de que maneira, nas receitas fiscais:

  • Mesmo com um aumento substancial da receita com o aumento nos impostos sobre os combustíveis, a receita com impostos indiretos ficou 502 milhões de euros abaixo do que previa o Orçamento.
  • Apesar do aumento do emprego e do fim dos cortes salariais no Estado, a receita com impostos diretos caiu 128,5 milhões de euros.

A queda nas receitas fiscais tem várias origens. Algumas por decisão do atual Governo, como a redução da sobretaxa de IRS e do IVA na restauração para 13% na segunda metade do ano; outras por decisão do Governo anterior, de acordo com Mário Centeno, que estima em 891,5 milhões os reembolsos face ao ano anterior e ainda acrescenta mudanças na tributação dos fundos de investimento em 120 milhões.

Também as receitas provenientes de fundos comunitários caíram substancialmente, menos 500 milhões de euros, segundo as contas do Governo.

No total, a receita total ficou quase mil milhões abaixo daquilo que esperava o Governo no Orçamento para 2016, mesmo tendo em conta que nestas contas já está incluído o impacto do perdão fiscal, o PERES, que rendeu aos cofres do Fisco e da Segurança Social pelo menos 588 milhões de euros em 2016.

Corte de 2,9 mil milhões na despesa acima do previsto

A redução da despesa é muito superior ao que estava previsto no Orçamento. São menos 2.926 milhões de euros gastos em 2016 do que aquilo que o Governo esperava gastar, mesmo tendo em conta que as despesas com pessoal, em ano de devolução de salários, cresceram mais 240,4 milhões de euros.

A maior redução acontece no investimento. O Governo já previa reduzir face ao valor gasto em 2015, mas acabou por intensificar este corte de tal forma que ele acabou quase no dobro. Face ao previsto no orçamento foram 760 milhões de euros. Face ao que aconteceu em 2015, foram mais de 1.360 milhões de euros.

O valor da outra despesa de capital também cai, mas fica praticamente igual aquilo que já estava previsto no Orçamento, não tendo assim impacto na diferença final. Assim, os cortes mais óbvios (face ao que já estava previsto no orçamento de 2016) surgem aqui:

  • menos 760 milhões de euros em investimento face ao que estava previsto no orçamento.
  • menos quase mil milhões de euros em consumos intermédios, não sabendo em quê ou em que setores.
  • menos 653 milhões de euros em juros

É aqui que se vê que de facto Mário Centeno mandou apertar o cinto. Onde, ainda não se sabe, já que de todas as vezes que o ministro e os seus secretários de Estado foram questionados sobre qual o valor das cativações que seriam transformadas em cortes, e onde seriam os cortes, nada foi dito. O que o Governo garantiu a Bruxelas, perante a exigência dos países do euro para que Portugal não sofresse sanções, foi que usaria as cativações para que o défice não derrapasse. Logo em setembro, 445 milhões de euros já tinham sido transformados em cortes permanentes. No final de novembro, ainda havia mais de mil milhões de euros de fundos dos orçamentos dos Ministérios que Mário Centeno não tinha dado autorização para gastar.

O que o Governo fez sempre questão de sublinhar em resposta foi onde esses cortes não seriam aplicados: Educação, Saúde e Segurança Social. Mas os cortes não têm necessariamente de ser feitos via cativações. Prova disso foi que, como admitiu o Governo num documento enviado a Bruxelas, foi pedido aos Ministérios que fizessem um levantamento de poupanças adicionais para fazer até ao final do ano. A face mais visível até acabou por ser o Ministério da Saúde, como noticiou o Observador, com o secretário de Estado da Saúde a publicar um despacho que dava ordens aos hospitais para congelar investimentos, quer para a restauração de aparelhos, quer até a limitar a renovação do stock de medicamentos.

Medidas extraordinárias não eram necessárias? Será o Eurostat a decidir

“É inequívoco que as metas foram alcançadas sem recurso a medidas extraordinárias”. A garantia foi dada por Mário Centeno na conferência de imprensa após serem revelados os números do défice. O ministro usou o PERES como referência, dizendo que apenas 391,9 milhões de euros tinham um impacto não repetível, ou seja, os restantes 100 milhões não seriam medidas extraordinárias.

Mas não só não é este o único efeito não repetível, como não é certo que o Eurostat tenha o mesmo entendimento que o Governo. Já no início do ano, Centeno mostrara que tem um entendimento diferente das autoridades europeias do que deve ser considerado uma medida temporária ou uma medida permanente, e volta agora a fazê-lo. A Comissão Europeia disse ao Governo que não aceitava que o programa de reavaliação de ativos seja considerado uma receita permanente, mas o Governo insistiu que é assim que a considera.

O impacto total do perdão fiscal do PERES nas contas do Estado foi de 588 milhões de euros e também ainda não é certo como será classificado. O Governo também insistiu com os técnicos da Comissão que a devolução de juros dos empréstimos europeus não devia ser considerado uma medida one-off, mas o entendimento dos técnicos também aqui foi diferente. Que medidas são estas:

  • 588 milhões de euros com receitas para o Fisco e para a Segurança Social com o programa PERES.
  • 104 milhões de euros de receita com o programa de reavaliação de ativos.
  • 264 milhões de euros de receita com a devolução de juros pagos do empréstimo europeu.
  • 98 milhões de euros de receita com a venda de aviões F-16 à Roménia.

No total, seriam 1054 milhões de euros, cerca de 0,6% do PIB. Se este valor fosse classificado na íntegra como medida one-off, o défice subiria para 2,6%, acima das meta acordada com a União Europeia e das metas do Governo tanto no início, como no fim do ano.

E o dinheiro que não foi para a Grécia

Mas há outros efeitos que deram uma ajuda ao défice. No orçamento para 2016 estava previsto transferir para a Grécia 106 milhões de euros referentes à parte dos lucros do Banco Central Europeu com a compra de dívida pública grega durante o período mais grave da crise. Os países do euro acordaram em 2012 ceder os lucros, que recebiam via lucros dos seus bancos centrais, ao Governo de Atenas, mas o acordo expirou quando o segundo resgate terminou em 2015.

Quando o Governo fez o Orçamento já não havia acordo, mas por uma questão de prevenção inscreveu esta despesa e até esteve perto de arranjar uma conflito com os seus parceiros de coligação, que anunciaram que iriam chumbar a proposta. Como o PSD anunciou antecipadamente o voto contra as propostas da lei e a abstenção nas propostas de alteração, o PS fez uma mudança de linguagem na proposta e acabou por conseguir a sua aprovação com o voto do PSD, pelo simples facto de ser uma proposta de alteração. Depois de tudo isto, confirmou-se o que já se sabia: não havia mais transferências para fazer para a Grécia.

Caixa adiada

O aumento de capital da Caixa Geral de Depósitos esteve previsto ainda para 2016, mas a injeção de dinheiros públicos no banco público só aconteceu este mês. A razão foi, em parte, o eventual impacto que poderia ter no défice orçamental.

O Governo conseguiu negociar um acordo com a Comissão Europeia para que o aumento de capital não fosse considerado uma ajuda de Estado. Se fosse, a CGD poderia ter de ser alvo de uma resolução, mas também o dinheiro público injetado na Caixa teria de ser registado no défice.

Mesmo com este acordo ainda há risco de a Caixa vir a pesar no défice, mas devido aos prejuízos do passado que foram cobertos por este aumento de capital. Os técnicos do BCE queriam que o aumento de capital fosse realizado logo em 2016 para que a Caixa Geral de Depósitos não terminasse o ano com um rácio de capital Common Equity Tier 1 (CET1) abaixo do mínimo regulamentar. No entanto, o Governo conseguiu convencer os responsáveis do BCE e da Comissão Europeia a adiar operação por uns meses.

Assim, apesar de a CGD ter terminado o ano com os rácios abaixo do obrigatório – mesmo com parte da operação já realizada, como a transformação das obrigações de capital convertível que o Estado detinha em capital da Caixa (perdendo o Estado este dinheiro) e a transferência das ações da Parcaixa para a CGD -, o Governo conseguiu evitar o risco de esta operação aumentar o défice do ano passado. Resta saber como o Eurostat vai classificar a operação. Uma parte destes prejuízos ainda pode aumentar o défice dos anos anteriores até 2012, mas se for todo imputado a um ano, será ao de 2017 e não ao de 2016.

Esta decisão evita mais um ano de incerteza em torno do encerramento do Procedimento por Défices Excessivos, já que o apoio ao setor financeiro tem de ser considerado para esta avaliação, e dá ao Governo a vitória política do défice perto dos 2% do PIB.