Ainda se recorda dos tempos em que o futebol era apenas discutido entre a qualidade dos jogadores e as opções dos treinadores? Bem, na verdade isso se calhar não existiu – por norma introduziu-se sempre o elemento externo do costume chamado árbitro para sacudir a água do capote . Nem é obrigatório saber-se o nome do escolhido, mas a culpa do resultado, qualquer que ele seja, é dele. Ainda assim, ficava tudo circunscrito às quatro linhas. Ficava, passado, porque hoje é tudo menos isso. E até os românticos deixaram de acreditar nessa versão mais na onda da carolice e da espontaneidade que existia. O clássico entre Benfica e FC Porto é sábado, dia 1 de abril. E parece mentira, mas é assim – já começou a ser jogado há muitas semanas… fora de campo.

O Observador foi recuperar os ataques e contra-ataques dos dois rivais desde 5 de janeiro, uma data importante para tudo o que se seguiu: foi nesse dia, mais ou menos ao início da tarde, que elementos alegadamente ligados à claque Super Dragões foram ao centro de treinos dos árbitros na Maia e ameaçaram o internacional Artur Soares Dias, que estava nomeado para o encontro do FC Porto em Paços de Ferreira. Em paralelo, mas sem qualquer ligação direta apesar das muitas extrapolações que foram feitas, Francisco J. Marques, diretor de comunicação dos dragões, tinha acusado no Fórum TSF o Benfica de estar por trás dos sucessivos erros em jogos dos azuis e brancos. “É consequência de um caldo de cultura que foi criado nos últimos anos e que tem várias facetas, uma delas relacionada com a arbitragem, e isto não tenhamos dúvidas que tem um pano de fundo por trás, uma eminência parda que se chama Benfica”, disse.

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No dia seguinte, já depois da tomada de posição dos Super Dragões sobre o incidente, negando qualquer tipo de ataque concertado e repudiando qualquer tipo de violência, e das declarações do líder da claque, Fernando Madureira, para encerrar o caso – “Conheço e sou amigo dele [Artur Soares Dias], quando me cruzar com ele, que acontece várias vezes, vou pedir-lhe desculpa pelo sucedido se foi alguém dos Super Dragões”, referiu –, também o FC Porto emitiu um comunicado onde dizia não se rever e lamentar episódios do género. Ainda assim, esse seria o mote para o que se passaria nas semanas seguintes, onde dentro de campo os dois rivais continuavam a não descolar do topo da classificação com vitórias consecutivas.

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O Benfica nunca tomou nenhuma posição oficial sobre o incidente, até por ter sido no Norte e não lhe dizer diretamente respeito. No entanto, além de várias iniciativas externas que gozavam com a alegada tentativa de tirar mérito às conquistas encarnadas, os vários comentadores do clube nos diversos canais fizeram grande alarido da situação, algo que os dragões perceberam e ripostaram através de Francisco J. Marques. “Não tenhamos dúvidas: o polvo é o Benfica. É muito fácil tomar posições públicas contra o FC Porto, é politicamente correto. Mas ser crítico do Benfica lesa a pátria, quem o faz é excomungado”, analisou no programa Universo Porto do Porto Canal, onde colocou Ferreira Nunes, responsável pelo sistema de observação e classificação dos árbitros, como um dos principais rostos desse dito sistema dominador do futebol português.

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Um dragão que começou a cuspir mais fogo

O FC Porto passou por profundas alterações entre setembro e outubro. A nível de futebol, com a saída de Antero Henrique de CEO e administrador da SAD do FC Porto (mantendo os cargos na Liga e na Federação, como representante dos dragões), Luís Gonçalves passou a ser o novo homem forte. Também na comunicação, depois da ida de Rui Cerqueira para diretor de conteúdos do Porto Canal, Francisco J. Marques assumiu a pasta da direção de comunicação. O reflexo das mudanças, neste caso a nível da “voz” dos azuis e brancos para o exterior, não foram imediatos, mas começaram a notar-se no início do ano.

O FC Porto passou a ser bem mais ativo na reação a situações que considerava menos corretas no futebol português, tendo sempre como alvo principal o Benfica. Fosse através da newsletter Dragões Diário, de programas do Porto Canal ou das redes sociais, pouco passou ao lado, visando sobretudo os casos dos jogos dos azuis e brancos e dos encarnados. As águias, por seu turno, assumiram sempre uma postura de não resposta direta. E quando sentiam necessidade de fazer algo, as ações passavam por fazer queixa da alegada coação que era feita pelos rivais. Tudo por estratégia, pensada e montada em termos internos. Até ao dia em que os responsáveis do clube da Luz consideraram que se tinha chegado a um limite e emitiram um comunicado.

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O encontro aconteceu uma semana e meia depois, após várias intervenções do FC Porto (e do Sporting, que se foi metendo de quando em vez ao barulho) defendendo que esse comunicado sim era uma clara tentativa de coação dos árbitros. Já o Benfica, no seguimento dessa reunião, emitiu um comunicado onde resumiu publicamente o seu conteúdo: manifestou a preocupação pelo clima de intimidação no futebol português “que se agravou a partir do momento em que se assistiu à invasão do Centro de Treinos do Polo Profissional dos Árbitros na cidade da Maia por parte de elementos afetos à claque do FC Porto”; indagou sobre as medidas adotadas após as ameaças expressas à integridade física dos árbitros; lamentou “o clima de impunidade no âmbito disciplinar”; e reiterou a confiança nos árbitros sem esquecer uma série de erros que no seu entender tinham ocorrido nos encontros mais recentes.

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Uma águia a tomar posições contra a impunidade

Os azuis e brancos mantiveram a mira nas arbitragens, denunciando situações de jogo contra o FC Porto (exemplo: expulsão de Maxi Pereira no Bessa por acumulação de amarelos em lances onde parece ter sofrido grande penalidade) e alegadamente favoráveis ao Benfica (exemplos: o encosto de Luisão ao árbitro Nuno Almeida ou a longa série de jogos de Pizzi sem ver o quinto cartão amarelo), ao passo que o Benfica, sem reagir publicamente, tentava junto das entidades denunciar a todo o custo aquilo que considerava ser uma clara tentativa de coação. Entretanto, o restaurante do pai do árbitro Jorge Ferreira foi vandalizado com inscrições alusivas aos Super Dragões. Nas últimas duas semanas, face também ao castigo de Luís Filipe Vieira, acabou por haver uma voz oficial a pedir mais verdade desportiva contra a dualidade de critérios a nível de castigos em discursos nas Casas do Benfica: Domingos Almeida Lima, vice-presidente do clube.

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Ainda assim, os encarnados não abdicaram de tomar posições públicas. Por exemplo, não se fizeram representar na Gala Quinas de Ouro, organizada pela Federação Portuguesa de Futebol, e no recente encontro entre Portugal e Hungria, disputado no Estádio da Luz. E explicaram através de comunicado que tinham pedido reuniões à Federação e à Liga devido ao “um grave clima de coação, intimidação e declarações públicas ofensivas quase diárias”.

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Esse jogo da Seleção acabou por marcar a última semana a nível de troca de palavras entre Benfica e FC Porto… com os dragões a serem aqui representados pela figura do principal líder da claque, Fernando Madureira. Expliquemos: os encarnados pediram satisfações à Federação sobre a nova falange de apoio nacional, conotada com os azuis e brancos e que terá ofendido adeptos do Benfica com cânticos à chegada ao recinto, como defendeu publicamente Luís Bernardo, diretor de comunicação; Madureira argumentou que houve apenas uma resposta a provocações alheias mas que o objetivo do Benfica era esconder uma eventual tentativa de agressão a Jaime Marta Soares, presidente da Assembleia Geral do Sporting, e o apoio camuflado que alegadamente dá às suas claques não legalizadas; e Francisco J. Marques aproveitou um comunicado da Federação, recusando qualquer tipo de instrumentalização a esse propósito da “novela claque”, para entrar no assunto e dar mais uma bicada à águia. “O comunicado tem um gravíssimo problema: não chama os bois pelos nomes. Quem tentou instrumentalizar foi o Benfica ou alguém tem dúvidas disso?”, questionou.

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É assim que chegamos ao clássico de sábado. Que começou a ser jogado muito antes, cá fora, em termos comunicacionais. O FC Porto, que curiosamente até está atrás na classificação no jogo jogado, tem mantido uma postura mais ofensiva, de ataque direto; já o Benfica, que lidera a Primeira Liga, opta por uma maior contenção, evita responder a provocações de forma direta e tenta marcar os seus golos diretamente nas instituições, sempre com uma perspetiva mais além do que o clássico e respetivo resultado. E aqui não há qualquer tipo de juízo analítico – tudo o que foi supracitado são factos. Concretos. Portanto, quando encontrar alguém com a capacidade saudosista e romântica de olhar para o futebol apenas enquanto fenómeno resumido ao que se passa nas quatro linhas, guarde-o e estime-o. Afinal, é isso que devemos fazer sempre que vemos bens raros e preciosos…