Este é daqueles testes simples: como perceber o legado de Ikutaro Kakehashi? Prestar atenção a alguns dos maiores sucessos do hip hop, da música de dança e, na verdade, de qualquer artista que alguma vez tenha feito uso das coisas digitais na década de 80 e 90 (e desde então, naturalmente). Referências como os New Order, Depeche Mode, Kraftwerk ou Soft Cell, rufias da categoria dos Prodigy, Dr. Dre, Lil Wayne, Run-DMC ou Kanye West, gente imprevisível como Marvin Gaye, Prince ou os Talking Heads e até tipos que ainda estamos à espera de confirmar se são deste planeta ou não, como Afrika Bambaataa.

https://twitter.com/DashBerlin/status/848591998651158530?ref_src=twsrc%5Etfw&ref_url=http%3A%2F%2Fwww.thefader.com%2F2017%2F04%2F02%2Froland-founder-ikutaro-kakehashi-dies

Dos Beastie Boys a Whitney Houston, em algum momento todos eles se renderam a estas caixas feitas de circuitos, interruptores e seletores com nomes tão simples como 303, 808 ou 909. O culpado foi o japonês Ikutaro Kakehashi, fundador da Roland (entre outras companhias) e criador destes sintetizadores. Kakehashi morreu no sábado, dia 1. Tinha 87 anos.

[um mash up de 25 canções que usam o TR-808 da Roland:]

Números diferentes indicavam funções diferentes. O TB-303 estava mais dedicado às linha de baixo digitais, fundamental por exemplo na revolução do acid house entre as décadas de 80 e 90. Os TR-808 e 909 eram caixas de ritmos, a segunda misturando elementos digitais e analógicos. Populares de forma tremenda na altura em que foram lançados, no início dos anos 80, são ainda hoje guardados como preciosidades por músicos, donos de estúdios ou simples fãs de instrumentos digitais. Estiveram em produção durante poucos anos, qualquer exemplar à venda desaparece rapidamente e a preços pouco saudáveis. E uma das grandes razões é a crença inabalável da parte de quem os usa que nenhum software emula o que estas caixas conseguem fazer.

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[o trailer do documentário “808”:]

De repente, era possível sequenciar ritmos (baixo e bateria) como antes ninguém conseguia. Sons de outro mundo que permitiam ir muito mais longe fazendo uso de muito menos. Com duas mãos, manipular todo um universo rítmico, de possibilidades praticamente infinitas, tal a paleta de combinações disponíveis. E ainda que esta revolução tenha acontecido sobretudo a partir dos anos 80, a verdade é que Ikutaro Kakehashi começou a transformação digital da música ainda na década de 60, quando fundou a Ace Tone. Em 1964, já o japonês tinha uma bateria eletrónica. É verdade que não chegou a nenhuma linha de montagem, muito menos chegou ao mercado, mas foi o passo decisivo para o que viria depois: o FR-1 Rhythm Ace de 1967 e a criação da Roland em 1972.

Seis anos depois, Kakehashi apresentava o antecessor dos populares 303, 808 e 909 (claro que também havia outros números mágicos pelo meio, como o 707, utilizado sobretudo para manipular samples). Com um nome mais próximo da ficção científica e menos das coisas da pop, o CR-78 permitia criar padrões rítmicos e guardá-los, para que pudessem ser utilizados em qualquer altura. Por exemplo? Ora, dos Blondie (“Heart of Glass”) a Phil Collins (“In the Air Tonight”), dos Ultravox (“Vienna”) às aventuras dos Radiohead (“Present Tense”) ou até de Mac DeMarco.

[Phil Collins dá umas explicações sobre o CR-78:]

https://www.youtube.com/watch?v=SJmJ9oQXObk

Com tudo isto — e com Kakehashi ao leme de uma revolução que se viu e ouviu rápida, eficaz e impossível de parar — produzir torna-se um função diferente e mais acessível, as fronteiras entre os estilos musicais esbatem-se, a noção de tempo, espaço e ritmo transforma-se numa realidade muito menos concreta. A repetição na música popular deixa de ser exatamente o que era, ao mesmo tempo que se tornava cada vez mais difícil repetir fosse o que fosse. Por isso as criações deste japonês continuam a ser procuradas e usadas, por isso os elogios ao trabalho de Kakehashi surgiram assim que a notícia da sua morte foi tornada pública.

Ganhou distinções e reconhecimento académico, recebeu Grammys e tem as mãos gravadas no cimento do Rock Walk of Fame. E tirando a biografia que publicou em 2002, I Believe in Music, Ikutaro Kakehashi não estava nada interessado no reconhecimento ou na fama. Preocupava-o o desenvolvimento tecnológico e como o seu trabalho podia ser usado, podia marcar e influenciar. Cumpriu a tarefa com brilhantismo. E se no Youtube há tutoriais, já se sabe, isso é sempre um sinal de sucesso.