Houve pesos-pesados na sala — duas das três maiores figuras do Estado — mas o elefante foi logo despachado ao início da sessão de lançamento da biografia de Jorge Sampaio pelo próprio autor. Após o Observador ter revelado que a biografia foi financiada por uma bolsa pouco transparente e por grandes empresas como a PT, a Mota-Engil, a Visabeira ou o banco BPI, o biógrafo José Pedro Castanheira deixou “a todos os patrocinadores uma palavra de gratidão pelo suporte financeiro essencial para a investigação”. Isto já depois de um editor, em representação da Porto Editora e da Nelson de Matos, ter criticado o facto de “parecer pecado” estes apoios de patrocinadores à cultura.

Assunto despachado. Ou quase. Ainda não se sabem os valores envolvidos, mas também não era dia de o fazer. A apresentação do livro foi na Fundação Calouste Gulbenkian e Jorge Sampaio chegou acompanhado do presidente daquela entidade, Artur Santos Silva. Era também ele o presidente do BPI quando o apoio do banco foi concedido no primeiro volume da biografia.

Sampaio arranjou uma bolsa para financiar a sua biografia, mas ninguém revela valores

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Mas o dia era de apresentar o livro. António Costa foi o último a chegar e ainda atrasou dois minutos o arranque da sessão para lamentar os atentados de Estocolmo. Lá dentro, o primeiro-ministro parecia radiante, até Marques Mendes falar.

Costa estagiou no escritório de advogados de Jorge Sampaio e começou por dizer que não estava na apresentação na qualidade de primeiro-ministro, mas de “amigo do biografado e biógrafo.” O primeiro-ministro conta que Sampaio lhe ensinou, como estagiário, que “um advogado nunca pergunta sem saber previamente a resposta“. Ainda hoje segue esse ensinamento, na sua preparação política. Sobre o biografado, Costa optou por destacar decisões de rutura que Sampaio tomou como ser candidato à câmara de Lisboa ou à Presidência da República em tempos pouco favoráveis.

Quanto à candidatura de Lisboa, Costa considera que o segredo para Sampaio ter vencido Marcelo Rebelo de Sousa num famoso debate (e nas próprias eleições) foi a “autenticidade”. No debate, acredita Costa, “depois de já ter mergulhado no Tejo e de ter conduzido um táxi, num frenesim bastante intenso, provavelmente disseram a Marcelo que tinha ali de mostrar uma grande ponderação, porque Jorge Sampaio é mais velho e figura de respeitabilidade.” Ora, assim, “Marcelo entrou nesse debate a querer ser outra pessoa, que ele não era, e que ainda hoje não é.” A sala voltou a sorrir e até se ensaiaram palmas, na referência ao atual Presidente.

“Encharcados até ao ponto mais íntimo”

O agora primeiro-ministro lembrou o momento em que Jorge Sampaio disse, ainda como presidente da câmara de Lisboa, que “seria muito estimulante para se candidatar a Presidente da República haver uma candidatura de Cavaco Silva“. Costa contou que Sampaio “resolveu a quadratura do… não vou dizer…”. Sorrisos na sala, pela aproximação ao programa em que António Costa participou durante anos como comentador na SIC Notícias. Então o primeiro-ministro retificou, no meio de sorrisos, o que ia dizer: “Resolveu a circulatura do quadrado, colocando-se como o candidato de toda a esquerda democrática a Presidente da República, mesmo que não fosse a vontade do PS.”

Costa foi o diretor de campanha de Sampaio na primeira eleição presidencial, dizendo que tem hoje “alguns remorsos de ter imposto uma campanha tão dura“. Mas tinha de ser. “O adversário principal [Cavaco Silva] só perdeu essa eleição. Ganhou todas as outras. E quatro delas com maioria absoluta”, lembrou.

O secretário-geral do PS recordou uma campanha “dura até meteorologicamente”, já que “não houve um único dia que não chovesse”. Um até podia ter sido de céu limpo, mas foi falso alarme. “Houve um dia em que não choveu durante um tempo e Manuel Alegre [também presente na apresentação] disse: ‘Vamos todos para a Praça da República. Pelo caminho começou a chover e ficámos encharcados até ao ponto mais íntimo. Mesmo no único dia que não era possível, levámos uma grande banhada. Literal, que depois das eleições não levámos”, contou o agora primeiro-ministro.

Sobre essa campanha presidencial, o jornalista António José Teixeira (a moderar o painel da tarde) lembrou o conselho (relatado na biografia) que Costa dava Sampaio perante as adversidades: “Sorria. Sorria sempre.” O primeiro-ministro confirmou, dizendo que um sorriso ajuda a resolver muita coisa.

Costa esteve sempre bem disposto, até Marques Mendes — que participava no painel — ter colocado o dedo nas ferida. O sorriso do socialista esmoreceu, enquanto tinha a mão no queixo e fitava o comentador com cara de poucos amigos. “Olha a cara que o Costa está a fazer”, ouviu-se na assistência. O ex-líder do PSD lembrou a coragem de Sampaio ao tomar a “decisão arriscadíssima” de fazer a “dissolução do Parlamento português” e a “enorme coragem de nomear um primeiro-ministro, quando a sua família política queria exatamente o contrário“. A família política era liderada então por Ferro Rodrigues, que estava na sala e que em 2004 — a esse propósito — se zangou com Jorge Sampaio e se demitiu da direção do PS.

São tempos difíceis que o PS não quer recordar. Ninguém o recordou. Exceto, claro, Marques Mendes. O comentador da SIC lembrou que “o dossier da Casa Pia foi um instrumento de muita pressão sobre o Presidente da República, que teve a coragem de não ceder e impor o respeito pela independência da Justiça. Parece fácil, mas fazê-lo é um pouco mais difícil.” Ora, nas escutas da Casa Pia o próprio Ferro Rodrigues tinha sido captado a dizer “estou-me cagando para o segredo de justiça” e Costa também foi intercetado. Mendes não teve pudor em lembrar o momento difícil. Por coincidência, quando Mendes acabou de falar, Ferro abandonou de imediato a sala. Mas não foi falta de fair play democrático: ainda antes de começar a sessão o assessor de Ferro tinha avisado que por volta das 19h30, o presidente do Parlamento ia ausentar-se para um encontro com o embaixador francês.

Mas Mendes ainda não tinha dito tudo e — sem se importar com o desconforto que causaria — deu como exemplo do livre-pensamento e da autenticidade do ex-Presidente da República um episódio entre Sampaio e a direção de campanha nas Presidenciais de 1996, liderada por… António Costa. Contou o ex-líder do PSD que “a direção de campanha tinha-lhe dito, não sei se o diretor [disse olhando para Costa, numa pequena provocação], que era politicamente incorreto assumir que votou no Otelo, porque queriam puxá-lo ao centro e isso era ir para a esquerda. Mas ele disse que votou no Otelo.

Mendes recordou ainda que, quando era líder do PSD, “Sócrates tinha ciúmes” da relação que tinha com Sampaio e recordou um penálti convertido por Jorge Sampaio num pavilhão em Cabo Verde — durante uma visita de Estado — em que, apesar da baixa estatura, Marques Mendes defendeu. Tinha manhas, garante, de guarda-redes de andebol.

Houve muitas histórias (uma muito recordada foi um debate de Sampaio sobre Timor na CNN) ao longo de duas horas e meia no auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Jorge Sampaio fez uma intervenção no final em que revelou algumas “inquietações”, como a má utilização de dinheiros públicos e o financiamento partidário ou a necessidade de recalibragem dos sistemas eleitorais, de forma a garantir novas formas de representatividade dos cidadãos. Sampaio está igualmente preocupado com o crescimento dos populismo.

Ficou assim lançado o segundo volume da biografia de Sampaio. O autor José Pedro Castanheira tinha, logo no início da intervenção, garantido que este “não é um livro de memórias nem uma autobiografia” e que é um “trabalho independente”. Garantiu ter tido acesso a um diário onde Jorge Sampaio descreveu os seus dias na Presidência (e não só), que se traduzem em 67 cadernos de folha A4, bem como o acesso a 289 caixas de arquivo pessoal de Sampaio.

No final, Sampaio foi aplaudido de pé. E voltou a emocionar-se. Ficou assim comprovada uma passagem do livro que António José Teixeira fez questão de lembrar: “Em Belém, existiam três tipos de pessoas: as que choram por tudo, as que choram por nada e Jorge Sampaio, que chora por tudo e por nada.”