A câmara de Ourém criou um posto de trabalho falso de vigilante numa escola do concelho para pagar, ilegalmente, o salário a um treinador de futsal. O relato consta do despacho de acusação — ao qual o Observador teve acesso — onde o Ministério Público (MP) pede a perda de mandato do atual presidente da câmara de Ourém, Paulo Fonseca, que, em conjunto com outros dois autarcas e do seu chefe de gabinete, é acusado dos crimes de peculato e falsificação de documentos. Para o MP, os autarcas tinham um objetivo claro: “colher dividendos políticos“.

Tudo começou, conta o MP, quando o presidente da junta de freguesia de Freixianda, Rui Vital, decidiu reativar o “Grupo Desportivo Freixianda” no verão de 2011, que se encontrava praticamente extinto e sem qualquer atividade. Vital promoveu então a eleição dos corpos sociais do clube, do qual se tornou vice-presidente (“apesar de ser ele quem, na realidade, comandaria os destinos daquela agremiação desportiva”, acredita o MP). Na altura, o autarca decidiu criar uma equipa de Futsal para disputar o Campeonato Distrital de Futsal de Seniores Masculinos e achou que a “contratação de um treinador de nomeada” era a melhor forma de dar “visibilidade” à nova equipa.

Rui Vital lembrou-se do técnico Pedro Henriques, que estava desempregado e que já tinha sido adjunto no Sporting e no Belenenses e treinador de guarda-redes no Benfica. Pedro Henriques aceitou treinar o Freixianda, mas para isso exigiu um vencimento de 1200 euros mensais. Vital decidiu então recorrer ao presidente da câmara Paulo Fonseca, que liderava a autarquia desde 2009, eleito nas listas do PS.

O presidente da junta e o presidente da câmara combinaram então um almoço para “resolver o problema” — que, lembra o MP, “não se apresentava de fácil resolução” devido “às restrições económicas do município e às necessidades financeiras que outras associações recreativas e desportivas do concelho, de igual relevância social, sentiam” e que podiam exigir um tratamento similar. O treinador Pedro Henriques também participou no almoço.

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Ficou então decidido, de acordo com o despacho, que, “dada a importância que a freguesia da Freixianda tinha na estratégia política e eleitoral do Presidente da Câmara, que o município asseguraria parte do vencimento pedido pelo arguido Pedro Henriques, que seria pago através da empresa municipal Ourém Viva, em termos que melhor se definiriam no futuro.”

O favor ao “amigo e correligionário político”

Em 2009, ano de autárquicas, o município tinha celebrado um contrato com o Ministério da Educação no sentido de assegurar a contratação de parte do pessoal não-docente em atividades de enriquecimento curricular e gestão do parque escolar. Sempre que era necessário contratar pessoal não-docente para as escolas, essa contratação passava pela Ourém Viva. Paulo Fonseca, lembra o MP, viu assim a oportunidade de proceder à “satisfação do pedido do seu amigo e correligionário político [Rui Vital também foi eleito nas listas do PS]” com “alguma informalidade e sem necessidade de grandes requisitos procedimentais.”

Paulo Fonseca falou de imediato com o seu vice-presidente e vereador José Alho, que tinha o pelouro da Ourém Viva. Ficou então decidido, mesmo sabendo que era de “forma ilegítima“, que a melhor forma de pagar ao treinador com dinheiros públicos, “sem levantar grandes suspeitas“, passaria por contratá-lo para uma vaga que aparecesse na escola. O grupo desportivo deveria pagar o resto do salário para chegar aos tais 1200 euros mensais. O chefe de gabinete de Paulo Fonseca, João Heitor (atualmente assessor no grupo parlamentar do PS na Assembleia da República), terá ajudado a elaborar o plano, sendo também arguido no processo.

O falso vigilante

Assim, no início do mês de agosto de 2011, “aproveitando o facto de o Agrupamento de Escolas da Freixianda necessitar de um vigilante”, que tinha sido solicitado pela diretora da escola, o vereador José Alho — tal como solicitado pelo presidente Paulo Fonseca — decidiu proceder à contratação. O Conselho de Administração da empresa Ourém Viva contratou então o treinador Pedro Henriques para “a vigilância de crianças, com a categoria de assistente operacional e uma remuneração mensal de 485 euros”, acrescido de subsídio de alimentação. Pelo meio, ainda se alteraram a data de documentos (de agosto de 2011 para 6 de junho de 2011) com, acredita o MP, “o intuito de aparentar, de modo ilusório, uma solicitação antiga e já previamente existente nos serviços.”

Como seria de esperar, pode ler-se no despacho, “o arguido Pedro Henriques não desempenhou nunca as funções de vigilante para as quais tinha sido pretensamente contratado, nem nunca compareceu nas instalações do Agrupamento de Escolas da Freixianda, exercendo apenas as funções de treinador do Grupo Desportivo da Freixianda”.

Ainda assim, de agosto de 2011 a março de 2011, foram-lhe sendo pagas as remunerações correspondentes às funções de vigilante na escola, tendo a Ourém Viva feito transferências para a conta bancária que o treinador Pedro Henriques tinha no Montepio num valor global de 4.4831, 44 euros.

O Ministério Público concluiu assim que os arguidos Paulo Fonseca, João Heitor e José Alho “arquitetaram e executaram” um plano em conjunto conscientes que estavam a trair “a confiança que lhes foi depositada com a disponibilidade do dinheiro do município, e porque praticadas no âmbito do setor público administrativo, colocavam em causa, além dos interesses patrimoniais do Estado, a fidelidade e a probidade exigida pelo exercício das duas funções.”

O MP acusa os arguidos de se “servirem dos seus cargos, para satisfazerem interesses meramente privados, à custa do património do município (prejudicando-o), cuja defesa e proteção se lhes impunha fazer prosseguir, abusando, assim, dos poderes inerentes às suas funções, com grave violação dos deveres” a que estavam obrigados.

O Ministério Público decidiu assim acusar Paulo Fonseca, José Alho e João Heitor, em coautoria, de “um crime de peculato e a “um crime de falsificação de documentos”, tal como os arguidos Rui Vital e Pedro Henriques pelos mesmos crimes.

Paulo Fonseca teve ainda uma “pena acessória”, sendo acusado de valer-se do seu “cargo político para a satisfação de interesses de natureza meramente privada, em em grave violação dos deveres inerentes às suas funções de autarcas, quebrou a confiança que nele foi depositada”. É por isso que o Ministério Público requer a perda de mandato. Este autarca, que é também candidato do PS à câmara para as autárquicas de 2017, já enfrentava um processo de perda de mandato na sequência de um processo de insolvência.

Ministério Público pede perda de mandato de presidente de câmara do PS