A revisão da lei do tabaco proposta pelo Governo suscitou polémica e sensibilidades e deverá ser esvaziada pelo Parlamento, com entidades ligadas à Saúde a lamentarem que tal aconteça.

O Partido Socialista (PS) e o Bloco de Esquerda (BE) querem eliminar a norma do diploma que proíbe fumar perto de hospitais ou escolas e vão apresentar propostas nesse sentido na reunião da comissão parlamentar de Saúde, quando na quarta-feira a proposta for apreciada na especialidade. Vários deputados socialistas também são contra a equiparação dos novos produtos de tabaco (como o aquecido) aos normais cigarros, como previa a proposta.

PS e BE querem eliminar proibição de fumar no exterior de escolas ou hospitais

As alterações ao diploma do Governo são, para entidades ligadas à Saúde contactadas pela Lusa, uma “vitória” para a indústria e uma oportunidade perdida para melhorar a lei.

O Governo apresentou no ano passado uma proposta de alteração da lei que começa por lembrar que o tabaco contribui para a morte de 27 pessoas por dia (10 mil por ano) e contempla a proibição do consumo junto a locais como escolas e hospitais e equipara ao tabaco tradicional os novos produtos como o tabaco aquecido.

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“Num contexto da defesa da saúde pública, deve aplicar-se o princípio da precaução, monitorizando e regulando a comercialização deste produto (tabaco aquecido) e interditando o seu consumo nos mesmos locais onde seja proibido fumar”, diz o legislador, ainda que admitindo que esse produto possa “ter o seu interesse”, embora não sejam conhecidos e comprovados cientificamente todos os efeitos.

O grupo de trabalho do tabaco, dentro da Comissão de Saúde, ouviu uma dezena de entidades e recebeu mais de três dezenas de pareceres e contributos, mas a questão mais polémica foi mesmo a do tabaco aquecido, que a indústria apresenta como um produto de redução de riscos, embora os deputados também questionassem o porquê de se proibir fumar a menos de cinco metros de hospitais, escolas, jardins-de-infância ou farmácias, por exemplo.

José Pedro Boléo-Tomé, pneumologista e coordenador da Comissão de Tabagismo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, diz que não está otimista quanto ao futuro da lei.

“Foi um mau sinal logo desde o início, quando a primeira entidade que a Comissão ouviu foi a Tabaqueira e a segunda o SICAD” (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, que promove a redução do consumo de drogas), como se estivesse “a promover um produto novo, quase como se fosse uma espécie de metadona”, disse o responsável à Lusa.

Os deputados, no entender do médico, foram “muito influenciados pela indústria e por outros argumentos, como os económicos”. E na lei, “que nem sequer é muito restritiva”, pelo menos “deviam aprovar a proibição de fumar à porta dos hospitais e das escolas. O resto, admito que seja necessário um período maior de tempo”, disse.

Se por outro lado João Curto, da Associação para o Estudo das Drogas e Dependências, diz que há “algum exagero” na lei, que devia antes prever “desincentivos junto dos jovens”, o investigador Hilson Cunha Filho diz que era fundamental legislar e que os deputados já foram com posições assumidas para a o grupo de trabalho.

“O que houve foi uma sensibilização dos deputados ao tabaco eletrónico e aquecido, foi feito ‘lobbying’ junto dos deputados, que assumiram a informação da indústria do tabaco como verdadeira e a defenderam”, disse à Lusa o investigador do Centro de Ciências Sociais, da Universidade Nova de Lisboa.

Emanuel Esteves, médico e presidente da Confederação Portuguesa para a Prevenção do Tabagismo, diz ter receio que o Parlamento aprove “alguns recuos”, apesar de a proposta de diploma “não ir tão longe” como devia face às evidências científicas do malefício do tabaco.

“Se vamos pegar numa lei que já não é completa e vamos torná-la mais branda vamos recuar em vez de progredir”, disse à Lusa, adiantando acreditar que ainda assim algo seja aprovado, até por compromissos com a União Europeia.

Nuno Jonet, responsável pelos assuntos institucionais da Tabaqueira (que há vários anos pertence à multinacional Philip Morris), disse aos deputados, quando foi ouvido em janeiro, que via “com interesse” uma legislação que diferenciasse o tabaco em função do contributo para a redução da nocividade, manifestando-se contra a equiparação de todos os produtos de tabaco.

Mas Emanuel Esteves adverte que aprovar só parte da lei é perder uma oportunidade e só se está a proteger a estratégia da Tabaqueira, que há 50 anos tenta “produzir substancias afirmando-as como inocentes ou de muito baixo risco”.