Há uma geração inteira que ao atar os sapatos, de vez em quando, entre um laço e outro dos cordões, dá por si a pensar: “Quando é que vou ter aqueles ténis que se atam sozinhos, como no Regresso ao Futuro?” E a verdade é que eles até já existem. Depois de um protótipo em edição especial, a Nike criou os Nike HyperAdapt 1.0, um modelo com tiras elásticas ligadas a uma bateria que respondem a sensores (e botões) para apertar ou alargar. Não estão por todo o lado, não se usam em cima de skates voadores ao estilo Marty McFly, mas são um bom indicador de como, cada vez mais, a tecnologia vai interferir nos destinos da moda.

“Onde está a nossa roupa inteligente? Onde?”, interrogou na Forbes, ainda em 2016, o director da Fashion Innovation Agency do College of Fashion de Londres, Matthew Drinkwater. Num mundo em que tudo em redor é inteligente, desde os carros aos eletrodomésticos, a questão começa a surgir. E não apenas em relação a peças de roupa que saibam de facto fazer coisas, mas também em relação às tecnologias de produção e, até, a um nível mais profundo – a ciência das fibras, com resultados diretos na matéria-prima, numa fase ainda anterior à confeção.

De Marty McFly para a Nike, os ténis que se apertam sozinhos.

O futuro da moda, aquele que vai além das novidades e das tendências que mudam de estação para estação, passa por aqui. Por agora, a indústria e os criadores resistem ao conceito de “wearable technology” (tecnologia que se veste) – muito por culpa de algumas ameaças à estética por parte de roupas com LED’s que brilham ou de exageros como chapéus que se propõem a ler a atividade cerebral –, mas já há algumas novidades tecnológicas que a moda não está a conseguir ignorar.

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Espelho meu, espelho meu, mais alguém se maquilhou com realidade aumentada como eu?

Quando se ouve falar de um espelho mágico, costuma vencer o imaginário infantil contaminado pela Disney. Mas já existe mesmo um espelho mágico para adultos, uma proposta tecnológica da maquilhagem Charlotte Tilbury, que borra a pintura a qualquer simples app com sugestões e tutoriais.

Na loja da marca em Westfield, as pessoas podem sentar-se em frente a um espelho e pedir para experimentar dez propostas diferentes de maquilhagem – a diferença é que não aparece ninguém com um pincel e acontece tudo através da utilização de técnicas de realidade aumentada. Em tempo real, sem tocar num único batom, a cara vai aparecendo pintada, e adapta-se aos traços do rosto que aparece à frente do espelho. Até é possível rodar a cabeça, aproximar e afastar, fechar um olho e deixar o outro aberto para espreitar melhor a sombra. E este é só um exemplo do que pode acontecer quando a evolução das máquinas se coloca ao serviço das marcas e dos produtos.

Um espelho que maquilha, da Charlotte Tilbury.

O passo seguinte até já pode ser querer sair de casa, ver que lá fora está frio e… imprimir uma camisola para vestir. É essa a proposta da Kniterate, uma impressora de malha 3D que é a mais recente proposta na tecnologia da roupa e que dá todo um novo sentido à arte de fazer tricô.

O projeto ainda está em fase de crowdfunding, há apenas 125 unidades disponíveis, e cada máquina (que só estará disponível em abril de 2018) custa entre 4.000 e 7.500 dólares (3.765 a 7.060 euros), mas a ideia é que seja assim tão simples: propor um design digital, carregar num botão e tirar a camisola da impressora. Se for uma peça simples, como um cachecol, já sai completamente pronta. Uma mais complexa, sai parte a parte e depois é só juntar.

Tal camisola, tal folha. Uma das peças de malha executadas pela Kniterate.

Quando se pensa que até a Benetton já faz tricô com máquinas especiais do Japão com uma técnica semelhante de impressão, em que introduzem um longo fio na máquina que se transforma numa hora num pullover sem costuras, e que já há marcas que fazem sapatos a partir de modelos impressos em 3D para depois os comporem para uso (como os Invisible Shoes de Andreia Chaves), as fábricas de roupa podem mesmo começar a mudar de aspeto.

Invisible Shoes, feitos primeiro com impressão 3D.

Regar as plantas, plantar coentros e cultivar… tecidos

Houve uma era em que a matéria-prima da roupa foi revolucionada por novos processos químicos (olá, roupa de lycra). Agora, as possibilidades são outras: “Acredito que o século XXI vai ser a era da biotecnologia”, afirmou Suzanne Lee, diretora criativa de uma marca chamada Modern Meadow, que consegue cultivar em laboratório um tecido chamado… cabedal. E é a partir desse cabedal desenvolvido com biotecnologia, um tipo de tecido que a marca acredita que vai ser comum daqui a uma década, que faz as suas roupas.

A Modern Meadow não é a única marca a experimentar as novas possibilidades tecnológicas na composição de matéria-prima para a roupa (ainda que Suzanne Lee seja mesmo a criadora de referência quando se fala de biocultura e de pensar em tecidos cultivados a partir de organismos como bactérias, fungos ou algas). Há outras, como a Bolt Threads, dos EUA, que consegue cultivar teias de aranha a partir da fermentação de proteínas e a transforma em tecido, ou a Spiber, do Japão, que está a tentar seguir o mesmo processo mas a uma escala de produção de massa, e que até já desenvolveu um casaco protótipo em parceria com a The North Face – o The Moon Parka.

O casaco Moon Parka, feito com teias de aranha.

E se é possível cultivar tecido, também é possível trabalhar as cores de novas formas. É o caso da The Unseen, que apresenta uma gama de tecidos que mudam de cor em interação com o ambiente, e por isso fala da sua tecnologia como uma espécie de “alquimia têxtil”. E isto não acontece só no campo das ideias – já foi mesmo produzida uma linha de acessórios para a Selfridges com mochilas e lenços que mudam de cada vez que tocam na pele, são abanados pelo vento ou são expostos ao sol.

Um acessório que muda de cor, da The Unseen para a Selfridges.

Trunfos que se escondem na manga, literalmente

Perante tantas possibilidades, a questão que ocupa os designer e os criadores de moda é muito mais estética do que técnica: é mesmo possível criar acessórios e peças de roupa que sejam fruto e veículos de tecnologia mas que sejam, antes de mais, peças de roupa bonitas para se usar no dia-a-dia? E, além dos já referidos ténis Nike que cumprem o sonho do Regresso ao Futuro, já há algumas propostas concretas de roupa a chegar ao mercado.

“A primeira vez que iniciámos conversações com várias marcas e empresas, a tecnologia que propusemos foi rejeitada como um corpo estranho”, contou recentemente Ivan Poupyrev, da Google, ao Business of Fashion. “Não foi fácil reduzir o ceticismo, e percebemos que a maneira de nos aproximarmos era através do tecido.” E foi assim, depois de algum trabalho, que nasceu o Jacquard, um casaco da Levi’s que usa tecnologia Google, e que deve provar, quando chegar às lojas ainda este ano, que apesar de tudo parece mesmo um casaco – e até se pode lavar na máquina.

O Jacquard inteligente da Levi’s e da Google.

A tecnologia está nas fibras de uma pequena parte da peça de roupa, e transforma a manga do casaco numa superfície que responde ao toque. Não há fios pendurados, não há baterias, não há luzes que piscam – e o resultado é ter uma ligação direta a dispositivos tecnológicos, como o telemóvel ou um relógio, e conseguir a partir daí fazer pequenas coisas práticas, como receber notificações ou mudar a música que está a ouvir.

Parece que é assim que terá de ser a verdadeira roupa inteligente: pode ser muito esperta, mas tem de continuar a parecer roupa. É o caso do Jacquard, mas também da Zenta, da Vinaya, uma discreta pulseira que não só se liga a smartphones como deteta emoções, ou dos novos óculos de sol da Lacoste, com uma tecnologia que permite que fiquem a boiar dentro de água. E até, em tempos em que é preciso pensar cada vez mais no ambiente, de ténis que produzem energia cinética (protótipo de uma designer chamada Soledad Martin) ou de biquínis que captam energia solar (do designer Andrew Schneider).

A pulseira Vinaya sabe ler as emoções de quem a usa.