Não foi bem o mundo ao contrário, mas os recados ao Governo — com a tónica da recusa da obsessão pelo cumprimento das metas Bruxelas — foram feitos à esquerda. Também acabaram por ser os partidos à direita do PS (além do próprio PS) que fizeram questão de lembrar Mário Soares no primeiro 25 de Abril após a morte do socialista. Apesar do “tempo novo”, que Ferro Rodrigues fez questão de lembrar, PCP, BE e Os Verdes não evocaram Soares e, no final da sessão, fizeram questão de não aplaudir o discurso do Presidente da República. Todos, sem exceção, apontaram baterias aos populismos que crescem na Europa e enalteceram o 25 de Abril (o CDS, sem surpresa, evocou o 25 de novembro).

Os partidos mais à direita aproveitaram o 25 de Abril para puxar pelas suas bandeiras mais ideológicas. No caso do CDS, na rejeição da eutanásia (“Não há vidas que valem a pena ser vividas e outras não”). Quanto ao PSD, insistiu na criminalização do enriquecimento ilícito (“proveniência da riqueza deve ser justificada”).

PSD quer “tolerância zero” ao enriquecimento ilícito

Teresa Leal Coelho, candidata do PSD à câmara de Lisboa. Foto: Henrique Casinhas/Observador

Tolerância zero ao enriquecimento ilícito. Sempre foi a batalha ideológica de Teresa Leal Coelho durante os últimos mandatos enquanto deputada e foi precisamente essa bandeira que levou para o discurso do 25 de Abril. Num discurso muito centrado na defesa da iniciativa privada e nas escolhas individuais, a deputada e também candidata do PSD à câmara de Lisboa deixou claro que não quer uma sociedade que se reveja em “conceções igualitárias, facilitistas ou de exclusão”. Nem uma sociedade com “privilégios injustificados”, “compadrio”, “corrupção” e “opacidade”. Para isso, disse, é preciso insistir na criminalização do enriquecimento ilícito e na criação de uma “sociedade inclusiva, livre e justa”.

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Dois modelos de sociedade. Para Teresa Leal Coelho há “uma fronteira clara” entre duas opções de sociedade, separadas por “pensamentos políticos inconciliáveis”. “Uma fronteira tão nítida quanto o paralelo 38 que divide as Coreias. Uma fronteira que, de um lado coloca o primado da pessoa e do seu projeto de vida, e do outro um Estado totalitário gerador de pobreza e de injustiça”, disse. E que dois modelos são esses? Um é o modelo de sociedade baseado “num mercado livre e concorrencial”, com “incentivos à iniciativa privada e às empresas”. O outro é um modelo de sociedade “caracterizado pela insegurança do direito de propriedade e da livre iniciativa económica, pela opacidade e ausência de escrutínio”.

Elogio a Mário Soares. À semelhança do CDS, o PSD evocou o nome de Mário Soares, que morreu este ano, notando aquele que denunciou o “Portugal Amordaçado” e que “desbravou o rumo” da consolidação da liberdade. “Por tudo isto obrigada Mário Soares, e obrigada a todos os que persistem em lutar pelos ideais da liberdade e da inclusão” na “continuação de Abril”. Esta foi a única vez que Teresa Leal Coelho referiu Abril no seu discurso, nunca tendo destacado o termo “25 de Abril”.

PS defende “viragem” na União Europeia

O discurso do PS esteve a cargo de Alberto Martins, um dos senadores do partido. Foto: Henrique Casinhas/Observador

Uma Europa mais dos cidadãos do que dos mercados. Os parceiros do PS pedem ao Governo que se afaste de Bruxelas, mas os socialistas não desistem da União Europeia. Querem é alterá-la. No discurso do 25 de Abril, Alberto Martins defendeu que após a crise económica — e todas as feridas que abriu — exige-se “uma União Europeia mais democrática, mais transparente, subordinando o poder económico ao poder político, e que se oponha ao domínio opaco da especulação financeira sobre o Estados e as instituições e que conduz um combate sem tréguas à corrupção e à economia subterrânea”.

Alberto Martins defendeu assim “uma viragem capaz de suster o declínio do projeto europeu que o abandono da solidariedade significou”. Para o socialista, a “UE não pode continuar a transformar um projeto europeu de solidariedade entre ‘Estados, povos e cidadãos’ no seu contrário, transferindo os imperativos dos mercados (e das grandes corporações e grupos financeiros) aos orçamentos nacionais sem adequada legitimação democrática.”

Lembrar Soares e os crimes do Estado Novo. O deputado socialista — que foi ele próprio vítima da repressão do Estado Novo, tendo sido detido durante o 17 de Abril de 1969, em Coimbra, quando afrontou o Presidente Américo Thomaz — lembrou que o 25 de Abril de 1974 é “a data mais importante da história contemporânea de Portugal”. Foi quando começou o “sonho do tudo ser possível”. O socialista lembrou ainda os “lugares de sofrimento” provocados pelo Estado Novo como “Tarrafal, Peniche, Caxias, a guerra em Nambuangongo ou os crimes de Wiriamu”. Neste primeiro 25 de Abril após a morte do fundador do PS, Alberto Martins não deixou de “honrar a memória de quem, este ano nos deixou, e da liberdade fez a sua bandeira, quer na resistência à ditadura, quer na fundação do regime democrático do 25 de Abril, um homem que cruzou a sua vida com o destino da pátria: Mário Soares.”

BE em estado de alerta porque “austeridade pode renascer”

Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, filha do revolucionário Camilo Mortágua. Foto: Henrique Casinhas/Observador

Os monstros desta geração. Joana Mortágua subiu ao púlpito para agradecer aos capitães e a “quem não se calou” durante o regime, mas também para deixar recados sobre os “monstros” que ensombram as gerações atuais. Se os “monstros” de outros dias foram a guerra e o fascismo, os de hoje são as imagens de guerra e de populismo que entram todos os dias pela televisão.

O falhanço do projeto europeu. Para o BE, tudo isto prova que o projeto que foi pensado para a Europa “falhou”. “Falhou porque submeteu a democracia aos mercados financeiros, porque perdeu contacto com os direitos sociais e económicos dos povos, porque espalhou pobreza e desemprego, porque quis rasgar a Constituição”, disse acrescentando que o medo se tornou o maior aliado do projeto europeu.

O perigo do renascimento da austeridade. “O maior perigo é a austeridade que renasce”, disse a deputada do BE, mostrando que o BE não vai “baixar a guarda”. Porque quando se baixa a guarda, “há austeridade que renasce” e “troikas que espreitam atrás de cada programa de estabilidade”, disse, num recado ao Governo socialista que o Bloco apoia no Parlamento.

CDS abana bandeira contra a eutanásia

Isabel Galriça Neto, do CDS, lembrou o pai que foi militar e os traumas da guerra. Foto: Henrique Casinhas/Observador

A fratura democrata-cristã. A deputada do CDS Isabel Galriça Neto fez uma parte do discurso mais ideológica, onde reafirmou a “necessidade de edificar uma sociedade moderna, que tem na proteção da vida o alicerce dos direitos humanos”. Defendeu, assim, “uma sociedade que não descarta os mais vulneráveis, antes deles cuida e lhes amplia horizontes.”

O CDS deixa pistas para o debate em torno da eutanásia, defendendo a “dignidade enquanto valor intrínseco e patrimonial inegociável do ser humano”, já que “independentemente das circunstâncias, não há vidas que valem a pena ser vividas e outras não“. A deputada do CDS defendeu assim uma “visão solidária da dignidade humana, ultrapassando uma outra perspetiva individualista que uma eventual ponderação mais isoladas dos direitos civis poderá afirmar”.

25 de Abril, mas também de Novembro. A deputada do CDS, Isabel Galriça Neto, fez questão de lembrar o fundador do PS que morreu em janeiro, ao contrário de partidos à esquerda do PS como o Bloco de Esquerda ou o PCP. “Neste primeiro 25 de abril após a morte de Mário Soares, figura central da nossa democracia, é de elementar justiça referir aqui o seu nome”.
Como é habitual no CDS — sem menorizar o 25 de Abril — Isabel Galriça Neto lembrou também o 25 de novembro, já que entende que reconduziu “o país para o verdadeiro rumo da liberdade e da democracia”. Com uma nota pessoal, a deputada lembrou: “Enquanto filha de militar e com dolorosas memórias da guerra colonial, celebrar o 25 de Abril, e também o 25 de Novembro, é não esquecer dias e horas de inexcedível alegria”. Além de enaltecer o dia em que o Grupo dos Nove pôs fim ao gonçalvismo, a deputada centrista não deixou de defender que “celebrar o 25 de abril é um ato de justiça, de reconhecimento e gratidão” do que Portugal é “como país” e que “não pode ser entendido como coisa menor, mero formalismo ou de circunstância”.

PCP quer “ir mais longe”

Jorge Machado, do PCP, repetiu o discurso habitual do PCP. Foto: Henrique Casinhas/Observador

Passos insuficientes. Para o PCP, com o novo Governo apoiado pela esquerda foi possível dar passos, “ainda que insuficientes”, no sentido da recuperação de direitos e salários. “São avanços que valorizamos, mas importa ir mais longe”, disse o deputado Jorge Machado.

Ir mais longe e renegociar a dívida. Depois do “ataque” da política de direita aos valores de Abril, o PCP pede mais Governo socialista. Mais e melhor distribuição da riqueza; mais combate à precariedade; mais salários e recuperação dos instrumentos de contratação coletiva de trabalho, assim como pede ao Governo que apoia que inicie o caminho de “renegociação da dívida” e de “acabar com a submissão ao Euro e às opções da UE”. Porque “é possível transformar o sonho em realidade e viver num país mais justo”, disse o deputado Jorge Machado, na linha do discurso habitual do PCP.

Continuar a lutar contra “anos negros do PEC” e contra a troika. Para o deputado comunista, durante décadas os direitos de Abril foram atacados através das “políticas de direita”, e mais recentemente através dos “anos negros do PEC (Programas de Estabilidade e Crescimento) e do “Pacto de Agressão”, numa referência ao período de intervenção da troika. A resposta a isso sempre “foi e é a luta” — “e provou-se mais uma vez que valeu a pena lutar”.

Ameaças do fascismo e guerra. Para o PCP, vivem-se hoje “tempos muito difíceis no plano internacional” e faz-se hoje uma “tentativa de branquear o fasciscmo”. Mas é preciso continuar a lutar contra essas ameaças belicistas que espreitam, mas sem ingerência. “A não ingerência e a resolução pacífica dos conflitos é o valor de Abril que importa defender”.

PEV aconselha Costa a afastar-se de metas incompreensíveis de Bruxelas

Heloísa Apolónia, d’ Os Verdes. Foto: Henrique Casinhas/Observador

UE é obstáculo à continuidade de Abril. A deputada do Partido Ecologista “Os Verdes”, Heloísa Apolónia, deixou críticas à União Europeia que considera ser um “sério obstáculo” à conquista de direitos sociais e ambientais, já que se “forma em torno de elites, serve os interesses dos poderosos, distancia-se dos povos, ignora as suas necessidades e exige metas incompreensíveis”. Os Verdes exigem “ao Governo português que governe para as pessoas, para o desenvolvimento do país e não esbarre na obsessão de números, encolhidos, para Bruxelas”. E avisa: “Essa é uma condição para a estabilidade do país.”

Críticas a Passos Coelho. Heloísa Apolónia lembrou os “avanços imensos” do país logo após o 25 de abril, mas denuncia que depois se foi “recuando”. Isso aconteceu, denunciou o PEV, “por exemplo, na legislatura passada, e com o Governo anterior, alguém ousará afirmar que o aumento de horas de trabalho, o fim de feriados, a fragilização de serviços públicos (…) ou o corte nos salários foram avanços? Não! Foram recuos que geraram pobreza.” A líder do PEV acusou o Governo de Passos Coelho de privilegiar “os grandes interesses económicos e financeiros” em detrimento do “bem-estar dos cidadãos”. Heloísa Apolónia considera que “em política não há inevitabilidades, mas sim opções, escolhas.”

PAN quer “mais democratização”

André Silva, do PAN. Foto: Henrique Casinhas/Observador

A radicalização que cresce. O deputado André Silva considerou que, na Europa, os movimentos radicalizados “crescem a passos largos”, erguendo-se muros, fechando-se fronteiras e retirando direitos às populações. “Um pouco por todo o mundo, e Portugal não tem sido exceção, subjugamos os valores ambientais e o bem comum à ditadura dos agentes económicos”, disse, sublinhando que só a “reafirmação dos valores de Abril” permitirá “reequilibrar essa balança”.

Mais democratização. Para André Silva ainda há um longo caminho a percorrer na procura desse equilíbrio. “Ainda há espaço para democratizar”, disse, sublinhando que parte desse trabalho de democratização está nas mãos dos deputados. “Sinto-me honrado por fazer parte de um movimento político e cívico a quem está a ser dada a oportunidade de contribuir para essa realidade”, disse.