André Biveti, estudante de Direito de 24 anos, fez-se militante da JS já no pós-“geringonça”. Esta terça-feira, foi pela primeira vez ao desfile popular do 25 de abril na Avenida da Liberdade. Tinha um amigo da JCP ali tão perto — com apenas cinco metros a separar as duas juventudes partidárias — e aventurou-se, de bandeira da JS na mão, para cumprimentar o amigo. “Esconde essa bandeira [da JS], essa bandeira não tem de estar aqui“, ouviu assim que chegou perto do amigo comunista. Não esperava a receção, mas percebeu a praxe: PS e PCP festejam juntos o 25 de Abril e respeitam a festa de cada um, mas não se misturam.

Ao Observador, o “jotinha” admite que a “recetividade” não foi a que esperava, mas justifica que “as picardias entre as duas juventudes partidárias que têm diferenças ideológicas são normais.” Até porque tudo ocorreu de uma forma “pacífica”.

As duas estruturas até partilham a maior parte das palavras de ordem, como o típico “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”. Mas depois começa o despique a ver quem diz mais alto. “É jota, é ésse. É jota ésse!”, ouve-se de um lado. “Jota, cê, pê!”, ouve-se do outro. De megafone na mão um jota socialista vai incentivando

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Em alguns momentos, a JS que ia atrás, entoava: “Deixem passar”. Enquanto alguns jovens da JCP respondiam, a espaços e em tom de brincadeira, que os socialistas não passariam — numa alusão ao “no pasarán” dos comunistas espanhóis durante a Guerra Civil (contra os fascistas de Franco).

O espaço entre ambos só ficou maior quando se intrometeram — já após o início do desfile — umas estranhas noivas que levaram à curiosidade dos populares. Eram, na verdade, atrizes que distribuíam cravos, numa performance da artista Regina Frank que desde 2014 faz intervenções de defesa de direitos sociais ou ambientais no espaço público (em dezembro de 2016, deu uma entrevista ao Observador).

Desta vez, em plena Avenida da Liberdade, Regina e outras atrizes e ativistas interpretavam o jornal “A voz das Camaradas”, sobre o papel das mulheres comunistas na clandestinidade. E distribuíam pequenos papéis com um texto que começava da seguinte forma: “Porque é que a polícia tenta sempre assaltar as nossas casas de improviso e faz tudo para apanhar os camaradas desprevenidos?”

Geringonça: entre o “oportunismo” e o fim da “hora do Governo ir embora”

Sem um lugar definido no desfile, Fernando Pereira andou sempre com o neto de trás para a frente. O motorista de longo curso, de 61 anos, e personifica um conceito inovador: “Militante do PCP não alinhado”. O comunista segura dois cartazes (um em que rejeita a “ditadura da UE”; outro em que se demonstra contra “castas” em Portugal), que se juntam ao cartaz do neto, Filipe Miguel, de 13 anos: “Quero uma escola com direitos.”

Filipe Pereira, de 13 anos, e Fernando Pereira, de 61, ainda no início da manifestação

Ao Observador, Fernando Pereira conta que leva o neto ao desfile do 25 de Abril desde que ele tem cinco anos.

Criticavam-me por trazer uma crianças pequena, mas acho que os jovens devem perceber como funciona a política para depois escolherem a ideologia que devem seguir”, conta o militante comunista.

O neto, Filipe Miguel, estuda numa escola pública e nem podia ser de outra forma. “Defendo uma escola pública e não privada. Não deviam ter acabado com alguns contratos de associação, mas com todos. O direito à escolha é um direito a quem tem dinheiro escolher”, atira.

Apesar de ser militante do PCP, Fernando Pereira está contra o facto dos comunistas suportarem o Governo socialista. O acordo de esquerda é, para este motorista, um “oportunismo dos partidos políticos que a compõem.” Critica o facto do PCP alegar que “mais vale pouco que nada”, já que “a dignidade ou é ou não é”. E acrescenta: “Sou pela ciência, não pela religião.”

As reivindicações existem na mesma ao longo do desfile, mas não têm o tom de outros anos. Já na parte final do percurso, o comentador Daniel Oliveira explica ao Observador que “o 25 de Abril é celebrado, acima de tudo, pela esquerda”, sendo “natural que nos momentos em que a direita está no poder, o desfile do 25 de Abril se torne mais reivindicativo”.

O antigo dirigente bloquista admite que a “geringonça” tornou o desfile num “momento mais de celebração”, admitindo que “tal como o país, que está menos zangado, o desfile é menos crispado”. Com a propriedade de quem acompanhou o desfile durante todos os anos, Daniel Oliveira comenta:

Não oiço ninguém a gritar: está na hora, está na hora do Governo se ir embora. Nem na extrema-esquerda”.

Na CGTP foram ditas as palavras de ordem de sempre, exceto, claro está, o pedido para o Governo ir para a rua (que já no ano passado, o primeiro em “geringonça”, não se ouviu). De resto, as mesmas reivindicações:

  • “Somos muitos, muitos mil, para continuar abril”;
  • “Abril, de novo, com a força do povo”;
  • “Abril está na rua, a luta continua”;
  • “Defender a Constituição, é a nossa obrigação”;
  • “Não queremos mais, injustiças sociais”

E, claro, o hino de sempre da central sindical.

Daniel Oliveira lembra que é lógico que “no tempo da intervenção da troika” o tom fosse mais duro, mas defende que “a descrispação já é anterior à geringonça. O PREC está cada vez mais distante. São cada vez menos as pessoas a sublinhar a divisão do verão quente.” Porém, e para que fique registado, ao longo do percurso Daniel Oliveira também garante:

Não vi nenhum sinal de geringoncisse”.

“Vasco Gonçalves foi o homem que mais beneficiou o povo”

Quanto ao PREC, ele ainda é lembrado. E de que maneira. Na zona dos Restauradores, Gracinda Cunha, enfermeira reformada de 74 anos, segura um cartaz com a cara de Vasco Gonçalves, primeiro-ministro na única experiência de governação mais próxima do comunismo que existiu em Portugal. Gracinda veio de Montemor-o-Novo de propósito ao desfile em Lisboa e explica que lembra Vasco Gonçalves como “o homem que mais beneficiou o povo no Pós-Revolução”. O problema é que depois veio o 25 de novembro de 1975 e “estragou tudo”.

No desfile viram-se cartazes de Vasco Gonçalves.

Gracinda admite que se “viviam tempos de muita euforia” e que era óbvio que “o gonçalvismo ia ter que se adaptar às novas realidades”, mas é certo que nunca outro “Governo fez tanto em benefício do povo.”

Ao longo do desfile, também seguiam muitos populares que se assumiam independentes. É o caso de Jorge Pulido Valente, estudante da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que segurava um cartaz com o rosto do poeta russo Vladimir Maiakóvski. “Sou de esquerda, mas independente. Não estou filiado em nenhum partido, sou pela defesa da cultura, dos direitos das minorias sexuais, e dos direitos sindicais. Participo não só nos desfiles do 25 de abril, como também nos do 1º de maio“, explica o jovem de 27 anos que pertence ao movimento “As toupeiras” (de defesa da cultura).

Desde quando participa? “Isso tem de perguntar aos meus pais“. Não é difícil. A mãe, Francine Corte Real, está ali mesmo ao lado. Francine não sabe precisar, mas diz que “o filho vai ao desfile desde pequeno, embora nunca tenha sido obrigado, teve sempre liberdade de escolha”. Francine apanhou o 25 de Abril com 12 anos e recorda os comunicados na televisão e o “V de vitória” que faziam os militares quando saiu à rua. Desde então, só falha o desfile quando está a trabalhar por turnos, no Aeroporto de Lisboa. Sobre o desfile, resume-o dizendo que é “um statement sobre a liberdade, independentemente dos partidos.”

Francine não nota que o desfile tenha diferenças do antes e depois da “geringonça”, embora admita que “houve uns anos um pouco mais agressivos, com umas piadas com pouca graça, como uma que falava do [Passos] Coelho assado.”

O desfile terminou perto das 18h00, no Rossio. Tinha começado, por ironia, no momento em que passava o “E depois do Adeus”, de Paulo Carvalho, nas colunas da chaimite da Associação 25 de Abril”. É uma chaimite com história, ou nem por isso. Nem tudo é belo e romântico no desfile do 25 de Abril. Um membro da associação explica ao Observador: “O exército não faz o registo das ações, por isso esta chaimite tanto pode ter estado no 25 de Abril, como pode nunca ter saído do quartel”.

Ao longo do desfile, não há um estilo revolucionário. Às boinas de Che Guevara juntam-se looks que podiam ser saídos da Moda Lisboa ou do Coachella. Só há um elemento que une todos — e que uniu de manhã Jerónimo de Sousa e Passos Coelho: o cravo. O cravo é, como o 25 de abril: de todos os que o quiserem usar.