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Discurso presidencial. O que disse Marcelo nas entrelinhas

Este artigo tem mais de 5 anos

Fez um discurso profilático contra populismos e nacionalismos e recusou estar a mandar recados. Mas enviou alguns. Aqui pode ler os comentários de Vítor Matos ao que o PR quis dizer.

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MIGUEL A. LOPES/LUSA

MIGUEL A. LOPES/LUSA

No seu segundo discurso em cerimónias do 25 de abril, poucos dias depois das eleições francesas, o Presidente da República focou-se nos fenómenos populistas e nacionalistas que têm assolado a Europa e o mundo, para os evitar por cá. Já tinha feito saber que seria mais ou menos inócuo de conteúdo, sem recados ao Governo e aos partidos. No entanto, não se pode considerar inócuo aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa foi hoje dizer na Assembleia da República, onde podemos desde logo notar duas ausências: deixou de apelar a consensos e não falou da União Europeia.

O que é que o Presidente disse? E o que se pode ler nas entrelinhas das principais passagens que aqui reproduzimos?

Faz, hoje, exatamente quarenta anos que, pela primeira vez, aqui, nesta casa da democracia, se iniciou (…) a celebração do 25 de Abril (…). E a dúvida que, de quando em vez, ouvi suscitar, a tantos dos meus jovens alunos foi esta: faria ainda sentido uma cerimónia de mera rotina, num claustro fechado (…) e repetir os argumentos do confronto político e cada instante, nalguns casos pontuado por avisos ou mesmo quase ultimatos presidenciais?”

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Marcelo Rebelo de Sousa começa por questionar a própria natureza da cerimónia, e dá logo no início a entender que não fará um discurso de recados ou críticas ao Governo. O Presidente recorda-se dessa primeira comemoração de há 40 anos e sabe que nesse discurso, o então presidente Ramalho Eanes arranjou o primeiro sarilho coabitacional com o Governo socialista de Mário Soares. Foi no 25 de Abril que Jorge Sampaio fez o discurso do "há mais vida para além do défice". E o último discurso de Cavaco Silva durante o mandato de José Sócrates também foi muito duro.

“Estes tempos são, amiúde, de substituição de substância pela forma, do estudo e da qualificação pelo improviso e a superficialidade, de carreiras laborais expedientes de ocasião, do debate de ideias por proclamações básicas, dizendo o que se pensa ser aprazível ao ouvinte e não o que deve ser dito. É por tudo isto, e mais a contingência de este empobrecimento ético e ético e doutrinário abrir caminho a radicalismo egoístas e excludentes, racismo e xenofobia, messianismos que da democracia apenas gostam de usar o que lhes convenha — que faz sentido manter viva esta tradição. Hoje, mais do que nunca. (…) Há datas, como a do 25 de Abril, que nunca serão indiferentes ao nosso destino coletivo”.

Sendo um homem que viveu nos velhos jornais, o Presidente acha que as redes sociais -- embora não as mencione -- e a velocidade a que se transmite a informação hoje na internet, são aspetos que não contribuem para que haja alguma profundidade na discussão política e na perceção das pessoas. Por isso, ao contrário dos seus alunos, acha que faz cada vez mais sentido manter as cerimónias tradicionais em que se comemora o regime democrático. O Presidente pensa que o empobrecimento e simplificação do discurso ajuda os populistas e xenófobos. Há muitos anos que se preocupa com a forma como a linguagem se vai aligeirando, mesmo nas elites. Este é Marcelo na sua versão mais institucional.

[Esta é uma forma de] confirmar que preferimos a democracia — apesar de imperfeita, injusta ou incompleta – à mais sedutora das miragens ditatoriais. Reforçar que é, precisamente, porque, entre nós, há tanta diversidade e tão vigorosos combates políticos, que o nosso sistema de partidos é dos mais estáveis na Europa, não deixando espaço a riscos anti-sistémicos conhecidos noutras paragens. (…) Neste tempo dos chamados populistas anti-institucionais, dos tropismos anti-sistémicos (…) queremos viver em democracia, sabemos que ela tem de ser mais livre e mais justa.

Que a democracia é incompleta e imperfeita já se sabe, por ser famosa a frase de ser o pior dos sistemas à exceção de todos os outros. Já não faz assim tanto sentido dizer que são os "vigorosos combates políticos" que tornam Portugal num sistema estável. Aliás, a violência de alguns dos debates parlamentares este ano poderiam ser pasto para populismos anti-sistema que não existem ainda por aqui. Ambíguo como sempre, Marcelo parece usar a sua velha técnica de fazer elogios com o objetivo de gerar desconforto aos sujeitos do elogio, ao dizer que não há espaço "a riscos anti-sistémicos" em Portugal. Não há à direita (por enquanto), mas eles existem à esquerda. O Presidente sabe que o PCP e o BE são partidos "anti-sistémicos" (o que significa anti-UE e anti-euro), mas parece com esta frase fazer uma pequena provocação. Se aqui PCP e BE não representam um risco quando apoiam um Governo centrista, europeísta e eurista, isso significa que estão domesticados ou que o seu radicalismo é irrelevante.

Os portugueses constroem a Democracia quando, ao fim de anos de sacrifício, sentem que valeu a pena tudo terem feito para sanear as finanças públicas ou tornar possível crescer e criar emprego de forma duradoura e criar condições para se reduzir a dívida que têm sobre os seus ombros, revelando resistência e constância exemplares.

De forma muito subtil, elogia o anterior Governo, liderado por Pedro Passos Coelho -- e a forma como os portugueses aguentaram -- e de maneira ainda mais subtil critica os ataques da esquerda às decisões tomadas nos difíceis anos da troika. No fundo, enaltece o facto de os portugueses não terem entrado numa deriva populista contra o poder político, uma vez que a coligação que governava até foi a força mais votada nas eleições de 2015, não transformando os sacrifícios em voto de protesto puro e duro, como aconteceu noutros países.

Há duas maneiras muito diferentes de se amar a nação.
Uma — a que infelizmente, vai grassando noutras sociedades é a de se dizer nacionalista contra o mundo, contra os que não são dos nossos, rejeitando e excluindo, vivendo em medo permanente perante tudo e todos. Outra — a nossa — (…) é a de amar a Nação de coração aberto, de alma universal. Um nacionalismo patriótico e de vocação universal, não um nacionalismo egocêntrico, agarrado a um pretenso passado, recriado porque não real e insuscetível e enfrentar o futuro.”

Aqui Marcelo tenta fazer pedagogia no sentido de que se pode ser patriota sem se ser nacionalista. Mas ao invocar esta natureza universalista do patriotismo português, o Presidente parece basear-se nas mesmas premissas que serviam para justificar o velho Portugal do Minho a Timor ou para difundir a ideia de que o colonialismo português era melhor do que os outros. Marcelo é filho de um ex-ministro do Ultramar e de certeza que não teve a intenção que se fizesse esta interpretação das suas palavras.

Importa que todas as estruturas do poder político, do topo do Estado à administração pública e, naturalmente, aos tribunais, entendam que devem ser muito mais transparentes, rápidas e eficazes na resposta aos desafios e apelos deste tempo, revendo-se, reformando-se ajustando. Os chamados populismos alimentam-se das deficiências, lentidões, incomepetências e das irresponsabilidades do poder político. Ou da sua confusão ou compadrio com o poder económico e social.

É a parte mais importante do discurso no que se refere à reflexão sobre o sistema e o regime. São recorrentes os casos de falta de transparência na administração pública e no poder político. Mas no caso dos tribunais, a lentidão ou as deficiências podem ajudar a desencadear os populismos que Marcelo deseja evitar. Sem citar casos concretos, o discurso do Presidente leva-nos a pensar de imediato no caso Sócrates que está a resvalar prazos, e sem a certeza de que haverá uma acusação sólida. Quanto a compadrios com o poder económico, daquilo que se sabe os casos Sócrates e BES também são exemplares. Nesta passagem, o Presidente identifica onde está a crise do regime e onde estão os maiores perigos para a democracia em Portugal, assim como os pontos a que a opinião pública é mais sensível.

Há, neste contexto, um bastião da nossa democracia que merece, hoje, na evocação do 25 de Abril, uma palavra muito especial: o poder local. (…) Já disse e repito — o poder local foi e é um fusível de segurança singular da nossa democracia.

Marcelo é um municipalista, que na juventude chegou a defender a regionalização do Continente, uma ideia de que veio a afastar-se mais tarde. Em ano de eleições autárquicas, a referência ao poder local era obrigatória. Mas num momento em que o PCP tenta colocar a regionalização de novo na agenda para pressionar o PS, o Presidente reforça a importância das autarquias, embora também reconheça, noutra passagem, que o poder local "não é isento de problemas e defeitos"

Os dois anos e meio que faltam para o termo da legislatura parlamentar terão de ser de maior criação de riqueza e melhor distribuição. Governo, seus apoiantes e oposições, que legitimamente aspiram a voltar a governar, estarão, por certo, atentos a este imperativo, na multiplicidade enriquecedora das suas opções.

É o único recado direto ao Governo e à chamada "geringonça", com um gato escondido: fala dando a entender que a legislatura vai mesmo até ao fim. Já não é a primeira vez que Marcelo faz este apelo, mas esta referência demonstra qual é a prioridade do Presidente: o crescimento económico e a justiça na distribuição da riqueza. Não fala no défice, nem dá os parabéns ao Governo por ter o "mais baixo défice da democracia". Não acentua que há um problema com a dívida. Não diz que os juros da dívida devem baixar para níveis espanhóis ou irlandeses. Não aponta para a classificação do rating das agências de notação financeira. Para Marcelo, o crescimento resolveria parte destes problemas, embora seja preciso dar atenção à forma como depois essa riqueza é distribuída, e aqui se revela a sua faceta social-democrata.

Somos uma pátria em paz, com apreciável segurança, sem racismo e xenofobia de tomo, aceitando diferenças religiosas e culturais como poucos, com rede de instituições sociais devotada, Poder Local incansável e sistema político flexível, mesmo se carecido de reformas, mais mais sustentável do que muitos outros nossos parceiros europeus. (…) Não trocamos o certo pelo incerto, não sacrificamos um democracia, ainda que imperfeita, seduzidos por cantos de sereia de amanhas ridentes, em que do caos nascerá o paraíso.

No fim da sua intervenção, Marcelo deixa uma nota de otimismo do ponto de vista daquilo que é o país -- tolerante e seguro. No entanto, identifica a necessidade de reformas no sistema político, embora deixe tudo em aberto sobre quais deveriam ser essas mudanças (se os partidos quiserem, podem abrir um processo de revisão constitucional, mas isso o PR não diz). Finalmente, critica aqueles que defendem o "caos" e aí parece estar a referir-se aos que desejam a saída da UE ou do euro, como caminho para o Paraíso. Mais uma vez, parece ser a esquerda um alvo das subtilezas presidenciais. Pode-se dizer que Marcelo fez um discurso de regime, a defender a democracia, exorcizando as tendências estrangeiras -- os populismos e os nacionalismos -- que não entraram ainda pelas nossas portas. Ao mesmo tempo, coloca PCP e BE mais próximos daquilo que ele acha ser o lado errado da história.
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