“Cá dentro tens um cérebro mas só sabes que tens um cérebro porque tens um cérebro cá dentro.” A primeira afirmação do novo livro da Planeta Tangerina traduz bem o abismo que quis enfrentar a editora, especializada (e premiada) em literatura infantil. Depois de “Lá Fora”, o guia para sair de casa e descobrir a natureza publicado em 2014, segue-se agora “Cá Dentro — Guia para descobrir o cérebro”. Um “livro gémeo”, mas virado do avesso, que tenta explicar como funciona o “equipamento mais complexo à face da terra” numa linguagem acessível a uma criança de 10 anos. Cinzento na massa que serve de tema, mas não no conteúdo.

“Quando saiu o ‘Lá Fora’ pensámos que era giro fazer um livro simétrico”, explica Isabel Minhós Martins, uma das fundadoras da editora e co-autora deste novo volume, juntamente com Maria Manuel Pedrosa, consultora na área da comunicação. “Na verdade foi o título que veio primeiro e demos por nós a pensar o que podia ser o ‘Cá Dentro’.” O corpo humano, os segredos do centro da Terra ou atividades para fazer dentro de casa foram algumas hipóteses levantadas. Nenhuma despertou, porém, tanto entusiasmo como a ideia de criar um livro sobre o cérebro, por muito complicado e infinito que fosse o tema. “Tudo o que nós pensamos, todas as nossas ações, tudo o que somos, tem sempre esse princípio físico que é o cérebro. Até temos dificuldade em acreditar que parte tudo desta matéria biológica”, diz Isabel Minhós Martins, admitindo que foi precisa “uma certa dose de maluquice” para deitar mãos à obra.

“Uma das primeiros coisas que aprendemos a ler são as caras de outras pessoas”, lê-se no livro, cuja capa sublinha a importância da nossa relação com os outros.

Antes das 370 páginas que chegam esta quarta-feira, 26 de abril, às livrarias, passaram-se três anos de inúmeras leituras e outras tantas ligações entre os 86 mil milhões de neurónios que temos na cabeça (um dos números avançados pela obra). “Começámos por fazer uma pré-estrutura mas percebemos que precisávamos da ajuda de pessoas da área das neurociências”, conta Isabel. Foi assim que foi formada uma equipa científica de seis revisores que foi fazendo “um pingue-pongue constante com as autoras”, não só para ajudar na escolha dos temas a tratar mas também para garantir que nenhuma informação saía incorreta.

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“O sono é uma espécie de equipa de limpeza do cérebro. As coisas que estão espalhadas são arrumadas nos armários certos. As coisas que não têm uso são colocadas no lixo. Isto acontece porque o cérebro não está interessado em armazenar tudo o que entra e é muito importante que faça esta seleção e limpeza.”
(“Cá Dentro”, página 101)

Destinado a leitores de todas as idades, a partir dos 10 anos, o livro arranca com uma dezena de “ideias ilustradas para pensar”. © Madalena Matoso/Planeta Tangerina

Do que faz o córtez pré-frontal à forma como nasce um pensamento, olhar para as “1.300 gramas da massa esquisita e acinzentada” a que chamamos cérebro trouxe questões complexas mas nem por isso de resposta impenetrável. “A ideia foi sempre apresentar uma coisa mastigada e acessível”, diz Isabel Minhós Martins, razão por que a editora nunca planeou entregar o assunto exclusivamente a um painel científico, ao contrário do que aconteceu com “Lá Fora”, escrito por duas biólogas. “Em vez de ter aquela abordagem mais fria e analítica da ciência, quisemos trazer um olhar de fora e até misturar a linguagem técnica com um lado mais poético e do quotidiano”, explica Isabel Minhós Martins. Por outras palavras, encher o livro de exemplos e comparações, consolidar ideias (às vezes repetindo-as de formas diferentes, em caixas e destaques), resumir páginas e páginas de investigações científicas em pouco mais do que uma frase, partilhar curiosidades (como a do neurónio Jennifer Aniston ou a razão para termos uma espécie de amnésia dos primeiros anos de vida) e até lançar desafios práticos aos jovens leitores, seja explicar por palavras o sabor de uma laranja, fazer diferentes expressões faciais em frente ao espelho, pensar em coisas antigas ou tocar com os dedos indicadores um no outro, por cima da cabeça, sem olhar.

“Uma ginasta faz um salto com pirueta vertical num mini-trampolim e o ginásio quase vem abaixo. Um jogador de futebol faz uma jogada (impossível) e põe o estádio de pé. Um bailarino é tão, tão perfeito no seu movimento que comove a plateia. Só em momentos como estes nos apercebemos do controlo de movimentos incrível de que o corpo humano é capaz. No entanto, todos nós, nos nossos movimentos quotidianos, somos capazes de proezas complexas. Tarefas simples como atar os sapatos ou agarrar um copo de água exigem grande destreza e só conseguimos realizá-las porque o sistema nervoso central é mais incrível do que o mais incrível dos computadores.”
(“Cá Dentro”, página 158)

O livro faz várias referências a escritores e artistas, dedicando mesmo um capítulo à criatividade e outro à experiência estética. © Madalena Matoso/Planeta Tangerina

Do crescimento à criatividade, os capítulos estão divididos em diferentes temas — sentidos, aprendizagem, memória, consciência e emoções, entre outros — e no final há ainda 100 páginas para quem quer saber mais, com factos e mitos (como o de que usamos apenas 10 por cento do cérebro), uma História do conhecimento deste órgão ao longo dos séculos ou ainda mapas para perceber como se organizam as principais áreas do cérebro e como é que os neurónios comunicam entre si.

“Memória que é memória tem sempre de bater à porta do hipocampo e da amígdala. No hipocampo as memórias levam a um carimbo do espaço (onde aconteceu) e do tempo (quando aconteceu); na amígdala levam um carimbo de emoção (o que sentiste).”
(“Cá Dentro”, página 116)

Tudo isto é ilustrado por Madalena Matoso, outra das fundadoras da Planeta Tangerina, numa segunda piscadela de olho ao volume anterior, “Lá Fora”. “A ideia é os livros estarem ao lado um do outro na prateleira, por isso quisemos manter não só a lombada e a capa dura mas também o jogo das duas cores”, diz Isabel Minhós Martins. Enquanto o guia da natureza se concentrava no laranja e no azul turquesa (a par do branco e do preto), “Cá Dentro” pinta-se em tons de vermelho e de um azul arroxeado e está cheio de desenhos que tão depressa remetem para o quotidiano como interpretam o tema de forma livre.

No nosso crânio há muito mais do que cabelo, e estas 370 páginas nasceram para o mostrar. © Madalena Matoso/Planeta Tangerina

“As imagens pretendem servir de isco para agarrar o leitor e ajudar a descomplicar o livro, mostrando como é que nós, no dia a dia, estamos sempre a usar este órgão mesmo sem perceber”, conclui Isabel Minhós Martins. Um exemplo? Para ler estas palavras está a ativar nada mais, nada menos do que 17 áreas diferentes do cérebro. Agora imagine o que pode ativar perante 370 páginas sobre o tema.