O Serviço Nacional de Saúde (SNS) soube responder bem à crise económica e financeira, mantendo as portas abertas, e, comparando com os restantes países da Europa, é mesmo “dos mais eficientes”. Porém, nos últimos seis anos, o esforço pedido às famílias aumentou e os pagamentos diretos com saúde ultrapassaram os 27% do total das despesas com saúde em 2015. Em 2010 esse esforço não ia além dos 23,3%, conclui o relatório “Health Systems in Transition”, que avalia o sistema de saúde e conjunto de medidas e políticas de saúde implementadas entre 2011 e março de 2016.

Estes números fazem de Portugal um dos países da UE que mais esforços exige às famílias para custear a saúde de forma direta, estando muito acima da média da União Europeia, onde a percentagem de pagamentos diretos ronda os 14%, referiu, ao Observador, o coordenador do estudo, Jorge Simões, que olha para este aspeto como uma “luz vermelha”.

Antes da crise, o encargo financeiro com a saúde que recaía sobre as famílias portuguesas era já significativo tendo em conta o objetivo de cobertura universal do Serviço Nacional de Saúde português. Algumas das políticas recentes que visavam combater as atuais dificuldades financeiras do SNS parecem ter agravado esta situação”, lê-se no relatório que está a ser apresentado esta manhã.

Em causa estão as despesas diretas com aquisição de medicamentos, exames de diagnóstico e consultas de especialidade, cuidados dentários, bem como óculos, próteses e outros dispositivos. Aqui não estão contabilizados os gastos com seguros, por exemplo.

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Já a despesa pública (64,7%) em percentagem da despesa total em saúde, no contexto europeu, está entre as mais baixas da UE, cuja média é de 76,0%. Entre 2010 e 2014 a despesa pública em saúde em Portugal caiu 9,7 pontos percentuais.

A verdade é que mesmo com este maior esforço a ser exigido às famílias, e da contenção da despesa total com saúde, olhando para o caminho traçado nos últimos anos — que foram abalados por uma forte crise económica e intervenção externa — “a comparação de Portugal com o contexto internacional relativamente aos recursos utilizados (despesa em saúde) e aos resultados atingidos (esperança de vida à nascença e aos 65 anos) mostra que o sistema de saúde português é dos mais eficientes da Europa”.

Mas no que diz respeito aos resultados em saúde, Jorge Simões sublinha que “quando vemos a esperança média de vida à nascença estamos melhor que a média da UE, estamos quase na eternidade, mas morremos carregadinhos de doenças”. “A expectativa de vida saudável aos 65 é 6 a 7 anos, dependendo se estamos a falar de homens ou mulheres, e na UE é nove anos. E se nos comparássemos com a UE a 15 esta diferença seria mais evidente ainda.”

Jorge Simões defende, por isso, a aposta na prevenção da doença e promoção da saúde, embora perceba que isso “não traga votos”, e acrescenta que este trabalho deveria ser articulado com todos os ministérios, num país “tão pequeno e centralizado”.

Reorganização da rede hospitalar e a falta de coragem política

Outro dos pontos focados neste relatório é o da reorganização e racionalização da rede hospitalar, que está ainda para ser concretizada. O tema é antigo e já no último relatório, de 2011, se falava desta questão. Aliás, num estudo realizado pela Entidade Reguladora da Saúde, em 2012, concluiu-se que existia uma distribuição desequilibrada dos serviços hospitalares ao longo do país relativamente às necessidades das populações, com excessos em algumas regiões e escassez em outras.

Sobre esta matéria, Jorge Simões refere que “em ano de eleições autárquicas, as decisões são ainda mais difíceis e é necessário apoio político muito forte para que haja racionalização”. E passado o ano de autárquicas? “Reorganizar, assim como a aposta na promoção da saúde, não traz votos”, sublinha o especialista, lembrando dois ministros que no passado se dedicaram à reorganização e que não ficaram populares: Albino Barroso (PSD) e Correia de Campos (PS).

A reorganização da rede seria, aliás, uma das formas de garantir a sustentabilidade do SNS, já que “estão, aparentemente, esgotadas as medidas tomadas pelo governo anterior” e que passaram pela diminuição do preço do trabalho dos profissionais, dos medicamentos e dos preços dos prestadores privados com financiamento público. Agora o caminho, segundo Jorge Simões, deve ser o da aposta no planeamento e também é preciso mais dinheiro. “É preciso planearmos muito bem, coisa que não fizemos no passado, quer em termos de recursos humanos, quer em matéria de investimentos (novos hospitais e novos centros de saúde). Temos sido maus a planear”, criticou Jorge Simões.

Os 9 mil milhões não chegam. Fizemos um emagrecimento brutal e mesmo assim o dinheiro não chega. A dívida aos fornecedores continua a aumentar e precisamos de pagar mais aos profissionais de saúde.”

O estudo também não passa ao lado da crise económica nem do memorando de entendimento com a troika que traçava 34 medidas para a área da saúde. Porém, “ao analisar os principais indicadores de desempenho do sistema de saúde, o impacto real das medidas implementadas pelo Memorando de Entendimento não é, ainda, completamente observável, uma vez que não pode ser facilmente dissociado da crise económica”, lê-se nas conclusões do estudo.

Setor privado a crescer

Não o qualifica como “surpreendente”, até porque o especialista tem estado sempre atento ao setor da saúde, mas não deixa de sublinhar “o crescimento do setor privado” como um dos pontos mais curiosos nestes últimos anos. “O setor privado tinha áreas onde tradicionalmente era muito importante: os meios complementares de diagnóstico, a diálise, a medicina física e de reabilitação. Mas nos últimos 10 anos nasceram hospitais privados muito grandes e com uma diferenciação muito grande, competindo com hospitais públicos, mesmo em termos de estatuto.” E não só a oferta cresceu como a procura tem sido “crescente”.

Este crescimento do setor privado é explicado, em grande parte, pelos tempos de espera relativamente longos para consultas ou cirurgias no SNS”, lê-se no relatório agora divulgado.

E Jorge Simões frisa aqui a “grande diferença em relação à Grécia”, que também foi afetada por uma crise económica e financeira. “Na Grécia houve transferência da procura privada para o público. Em Portugal a situação sui generis é que o SNS manteve a sua resposta, não baixou oferta, mas o setor privado cresceu não só nas áreas tradicionais, mas fundamentalmente na área da hospitalização, porque o SNS teve menos meios financeiros e menos capacidade de inovação e não deu resposta suficiente e atempada“, explicou o especialista.

O Health Systems in Transition (HiT) oferece uma descrição detalhada do sistema de saúde de cada país, incluindo países não europeus, bem como das reformas e iniciativas políticas em curso ou em processo de desenvolvimento. Este estudo é elaborado no âmbito do Observatório Europeu de Sistemas e Políticas de Saúde, uma parceria que inclui os governos de vários países, a Organização Mundial da Saúde, a Comissão Europeia, o Banco Mundial, a London School of Economics and Political Science e a London School of Hygiene & Tropical Medicine.