Ensinou-me a ler e escrever, o senhor Amâncio. Antes mesmo de ser tempo de ler e escrever. Era um fervoroso adepto do seu Estrela da Amadora, fiel tricolor de todos os fins-de-semana na Reboleira. Dele, lembro-me de ter sempre um pequena pasta almofadada que, chegado à bancada, desdobrava, pousava-a sobre o banco e sentava-se. A primeira vez que assisti a um jogo de futebol foi levado pela mão dele. Mão segura, enrrugada, bem maior do que a minha o era então. A mão de avô que nunca tive. Sabedor como só os avós o são. Quando um dia, sentado ao seu colo — era sempre sentado ao colo que lhe escutava as histórias –, lhe perguntei a razão de tanto saber, respondeu-me com um provérbio: “O diabo sabe muito porque é velho, Tiago”.

Esta semana o senhor Amâncio não assistiu, como sempre fez pela televisão, à Liga dos Campeões e ao Mónaco-Juventus. Não voltará a assistir. Mas o provérbio dele serve-me de título a esta crónica. Todas as letrinhas desta crónica me serviu ele delas.

Vamos a números antes mesmo do futebol. A média de idades na Juventus é de trinta anos e trezentos e quarenta e seis dias. A do Mónaco é de vinte e cinco anos e duzentos e quarenta e seis dias. Olhando só aos titulares no Stade Louis II, os italianos têm, tudo somado, quinhentos e sessenta e sete jogos disputados na Liga dos Campeões; o Mónaco, cento e vinte e seis. Só o guarda-redes bianconero, “Gigi” Buffon – a quem só falta vencer a “Champions” a nível de títulos pela Juve – chegou esta noite à centena.

Sim, o diabo sabe muito porque é velho. Aqui, Vecchia. Vecchia Signora.

Apita o espanhol Mateu Lahoz, rrrrola a bola no principado. Logo aos 12’, a primeira ocasião de golo: Pjanić, é sabido, põe a bola onde quer, mais longa ou curta, tensa ou forte – e colocou-a à direita, nas costas do lateral Sidibé. Quem topou logo que ele a poria lá foi Dani Alves, que surgiu nas costas de Sidibé, cruzou de primeira para a pequena área, Gonzalo Higuaín (sem oposição) “só” tinha que cabecear, mas faltou-lhe um palmo a mais de altura. Lá entender, entendem-se ele, Dani e Gonzalo.

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No Mónaco, Falcao (no “bolso” de Bonucci o tempo todo) e Bernardo, mais preocupado em ajudar na direita o adaptado à defesa Nabil Dirar do que em atacar, mal se viam. Então, era a petiz Kylian Mbappé quem tentava fazer tudo sozinho. À passagem do quarto de hora, Dirar cruzou para a área desde a direita, o Mbappé antecipou-se a Bonucci no primeiro poste, desviou de canhota, mas Buffon defendeu in extremis. Quanto a ocasiões de golo do Mónaco, foi a primeira e última. Em todo o jogo.

A seguir, o golo da Juventus. 29’ contados. O que ele começou, ele foi concluir. E o “ele” aqui é Higuaín. Pouco depois do meio-campo, o argentino viu Dani Alves a subir a todo o vapor pela direita, colocou lá a bola em profundidade e começou a correr em direção à área. Nem precisou de lá chegar. Alves ganhou no ombro a ombro com Kamil Glik, tocou de calcanhar para trás e Higuaín, de primeira e à entrada da área, rematou rasteiro e cruzado, sem hipótese de defesa para Danijel Subašić.

O Mónaco, após o intervalo, e a perder em casa, voltou-se ao ataque. Mas destapou em demasia os pés, que é como quem diz, a defesa. Era quase sempre assim: um monegasco para dois ou mais da Juventus. Tinha tudo para correr mal. Aos 54’, à esquerda e na defesa, Lemar era o último. Não podia inventar mas inventou. Marchisio roubou-lhe a bola sem falta, seguiu na direção área e lá entrado, chutou. Forte e cruzado. Subašić defendeu com o que tinha à mão — neste caso, o pé esquerdo.

Logo em seguida, aos 59’, mais do mesmo – mas aqui o desfecho foi outro. Bakayoko foi cercado, autenticamente, por Alves e Dybala. Sozinho, perderia a bola. O argentino e o brasileiro tabelaram à direita, Alves ficou livre como um passarinho para cruzar para o segundo poste, Kamil Glik esticou-se todo, até o último dos tendões, para cortar mas falhou, e Higuaín, furtivo, desviou de pé esquerdo para o segundo golo da Juventus.

O diabo é velho porque sabe muito, sim. Esta foi a décima quinta assistência para golo de Dani Alves na Liga dos Campeões. Ninguém tem tantas quanto ele. Híguian, por sua vez, foi o segundo argentino a bisar numa meia-final da prova. Antes, só Messi e Alfredo Di Stéfano o haviam conseguido. Ele, Higuaín, que fez o que tinha a fazer (resolveu o jogo e, praticamente, a eliminatória) e foi à vida dele. Entrou Cuadrado aos 77’.

E mais não há a contar deste jogo. Mas há um agradecimento a fazer. Ao senhor Amâncio. Até um dia, “avô”.