Os médicos portugueses que acompanham um papa conhecem o seu estado de saúde através de um “dossier secreto” e, durante a visita, carregam uma mala que parece uma unidade de cuidados intensivos, com sangue do grupo do líder religioso.

Ramiro Figueira era diretor dos serviços médicos do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) em 2000, durante a visita de João Paulo II a Fátima. Foi o seu médico durante todo o tempo em que o papa esteve em território português, uma missão que começou muito antes. Para se inteirar do estado de saúde do papa, Ramiro Figueira contactou várias vezes com o médico pessoal de João Paulo II, no Vaticano. Este apresentou-o como “uma pessoa depauperada, com diversas patologias, que tinha sofrido várias intervenções cirúrgicas, sofria de Parkinson e era um homem idoso”. “O que o médico nos pede é precisamente isso: o acompanhamento permanente”, além de partilhar “alguns dados de saúde”.

Para Ramiro Figueira, esta foi uma visita de “grande preocupação”, pois o papa era uma pessoa que se deslocava “com muita dificuldade, embora falasse corretamente”. “A nossa preocupação era que ele chegasse bem, ficasse bem e partisse bem”, disse, recordando que, além do acompanhamento permanente do papa, a equipa do INEM servia como “elo de ligação entre o Vaticano, o médico do papa e os vários hospitais de referência”. Em caso de necessidade, o papa seria transportado para o Hospital de Santa Maria num helicóptero que estava na Cova de Iria, onde estaria também Ramiro Figueira. O clínico dispunha ainda de uma mala com o material necessário a uma intervenção imediata.

As preocupações de Ramiro Figueira adensaram-se mal João Paulo II desembarcou no aeroporto de Figo Maduro, antes de seguir de helicóptero para Fátima. À sua espera encontrava-se um grupo de deficientes em cadeiras de rodas, aos quais o líder religioso fez questão de dar a bênção. “O papa andava com grande dificuldade e a grande preocupação era pensar que o senhor ia embrulhar-se nas cadeiras de roda, cair. Foi uma preocupação grande. Felizmente dirigiu-se aos deficientes, deu a bênção e não caiu. Foi a grande primeira preocupação”, adiantou.

Uns minutos depois, nova ansiedade: o papa tinha de subir para o helicóptero e à sua espera estava uma pequena escada, mas sem corrimão. “O papa para subir aquilo ia ser um drama. Por isso, eu e o enfermeiro servimos de corrimão”, contou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Durante a visita não foi necessária nenhuma intervenção médica. O papa chegou a Fátima, tomou uma refeição e recolheu ao seu quarto na Casa de Nossa Senhora do Carmo. A equipa médica pernoitou no mesmo espaço. No santuário, o médico esteve sempre junto de João Paulo II, dissimulado nas costas de uma enorme cadeira de mármore, apoiado no material de emergência e reanimação.

Ramiro Figueira recorda João Paulo II como “um homem simpático”, mas não esconde a impressão que lhe causou o seu estado de saúde, bastante pior do que parecia através da televisão. Lembra-se que o papa lhe perguntou se ia à missa e, perante o seu espanto com a pergunta, este colocou-lhe a mão na cabeça.

João Paulo II morreu em 2005 e, em 2010, foi o seu sucessor Bento XVI que visitou Portugal, passando por Lisboa, Porto e Fátima. Nesse ano, coube ao médico do INEM António Poças prestar a assistência médica ao papa. Recebeu um “dossier secreto” com a situação clínica de Bento XVI, através do qual tomou conhecimento de “todas as patologias e limitações que sua santidade apresentava”, bem como a sua “medicação habitual”.

Bento XVI veio acompanhado pelo seu médico pessoal, com o qual António Peças foi falando e tomando decisões. Como quando optaram por uma paragem a meio das escadarias do santuário, aparentemente para um aceno à população, mas que visava permitir ao papa descansar. Para António Peças, a um médico que assume a função de zelar pela saúde de um papa não pode faltar nada e, principalmente, “a esperança de que nada aconteça”. “A responsabilidade em caso de haver necessidade de socorro é muito grande. Foi a situação em que senti maior responsabilidade sobre mim”, disse.

Além dos meios móveis – ambulância e helicóptero e os hospitais em prontidão total, com quartos e equipas preparadas nos hospitais de Santa Maria (Lisboa) e São João (Porto) – o médico contava com uma mala equipada com diverso material como “drenos torácicos, material para entubação orotraqueal, todas as drogas necessárias, material para reanimação e reservas de sangue tipado do grupo de sua santidade para o caso de haver necessidade de transfundir”.

Acompanhar Bento XVI em permanência permitiu a António Peças aperceber-se que este papa era uma pessoa muito mais calorosa do que inicialmente imaginara e também gulosa, uma característica que já era do conhecimento do seu médico pessoal. “Conversei com o seu médico que me confirmou que, apesar de não ser algo relativamente ao qual devesse abusar, na realidade [Bento XVI] tinha um gosto especial por chocolates e doces e gostou bastante da doçaria que foi posta à disposição em Portugal”, revelou.

Com várias cidades para visitar, o itinerário foi pensado e adaptado a uma velocidade adequada às capacidades do papa, na altura com 83 anos, e não foi necessária a intervenção dos médicos portugueses. A qualidade da assistência prestada terá agradado ao papa, uma vez que “o chefe da sua segurança enviou um louvor à pessoa responsável no INEM pela organização desta equipa, Bruno Borges, dizendo que, das inúmeras visitas papais que já tinha acompanhado, esta teria sido, sem dúvida, uma daquelas em que a assistência médica tinha sido mais bem organizada”.

António Peças sublinha a importância de ser o médico pessoal de um papa e contou que transmitiu a Bento XVI o agrado pela sua visita e pelas funções que teve oportunidade de desempenhar. “Com a emoção, disse que da próxima vez que viesse a Portugal gostava de ter novamente a oportunidade de ser o chefe da equipa médica que lhe prestasse a assistência, esquecendo-me eu da idade avançada que sua santidade tinha na altura…”