“As meninas querem ser professoras, médicas, porque querem ensinar alguém, tratar alguém. O informático escreve código, não tem uma missão. E, se calhar, é isso que falta. É mostrar que a tecnologia não é um fim em si mesma, mas que serve para uma série de outros fins nobres”. É por isso que “ainda faz sentido” dedicar um dia às mulheres que trabalham na área das tecnologias, diz Ana Neves, da direção da Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação (APDSI). Nem que seja um “pretexto” para se falar na falta de mulheres no mundo tecnológico.

O dia Girls in ICT (sigla inglesa para Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC) celebrou-se a 27 de abril e é uma iniciativa mundial da União Internacional de Telecomunicações para incentivar as jovens a considerarem carreiras nessa área. A APDSI reuniu um grupo de trabalho, constituído por gestores, professores, editores de livros infantis, ativistas, entre homens e mulheres, para refletirem sobre as razões que levam as mulheres a serem, ainda, uma minoria nas TI (apesar das oportunidades e dos bons salários) e sobre o que é possível fazer para mudar esse cenário. Este sábado é a vez da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) organizar, o Girls in ICT, para sensibilizar não só as jovens, mas também pais e professores, para as oportunidades de carreira e realização profissional na área.

A dificuldade em contratar profissionais das TIC é assumida por muitas empresas, tanto em Portugal como na União Europeia (UE). Segundo um relatório publicado pela Comissão Europeia em janeiro de 2014, 15 mil vagas de emprego vão ficar por preencher em Portugal, em 2020. Tendo em conta o total dos 27 Estados-membros da UE (à data da publicação do estudo), vão sobrar 913 mil vagas. Os dados não são animadores quando falamos de mulheres nas TIC.

Há falta de pessoas a trabalhar na área de TI, quer sejam rapazes ou raparigas. Se atrairmos mais raparigas também podemos atrair mais pessoas”, considera Teresa Chambel, professora no departamento de Informática da FCUL, e responsável pelo evento.

Não é pela discriminação. “O mercado está tão sedento de profissionais nestas áreas que nem sequer se pode dar ao luxo de discriminar as mulheres. Depois de elas lá estarem, poderá haver algum tipo de discriminação em relação ao salário ou progressão de carreira”, considera Ana Neves.

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“Há um contexto social que é preconceituoso desde cedo”

“Há muitas raparigas a irem para o Ensino Superior e há um desequilíbrio entre esse número e a percentagem de raparigas que vem para esta área”, nota Teresa Chambel. De acordo com dados do Eurostat, publicados por ocasião do dia internacional Girls in ICT, a União Europeia tinha cerca de 1,4 milhões de estudantes na área das TIC, em 2015. As mulheres representavam apenas 17% desse universo. Em Portugal, 14% dos estudantes das TIC eram mulheres. Mas o que é que as afasta?

Há aqui um contexto social que acaba por ser preconceituoso e que é incutido desde cedo. Tudo está formatado para que as meninas comecem a pensar noutro tipo de carreiras”, considera Ana Neves.

“Os role models ainda são muito masculinos”

Nancy Brito, empreendedora e investidora, formada em ciências da computação, vai ser uma das oradoras do evento e também acredita que o problema é social. “A escola é fundamental na nossa vida. Vim parar a esta área, porque aos 16 anos tinha uma professora de matemática que me disse para aprender a programar. Se não fosse por ela, talvez não estivesse nesta área”, conta ao Observador. Quando entrou para a faculdade, em Toronto, no Canadá, no final dos anos 80, só 2% dos alunos eram mulheres. No ano passado, diz, a média baixou.

Para a empreendedora, “os role models (modelos a seguir)” ainda são “muito masculinos” e “não há muitas mulheres que digam que adoram trabalhar na área tecnológica”. Porquê? “As mulheres precisam de perceber que estão a construir e que não estão ali só para ficar agarradas a um ecrã. Normalmente, as empresas tecnológicas não têm muito cuidado com isso”, considera.

Se o número de alunas em cursos das TIC é muito inferior ao de alunos, a tendência não se altera quando se fala do mercado de trabalho. Em 2015, a UE tinha quase oito milhões de profissionais das TIC. Os números mostram que a profissão é predominantemente masculina, uma vez que as mulheres representavam apenas 16% (1,2 milhões) de todos os especialistas.

15,3%

é a percentagem de mulheres que trabalha na área tecnológica em Portugal, um indicador abaixo da média europeia. No fim da tabela, está a República Checa, Eslováquia e Hungria, onde as mulheres representavam menos de 12% dos especialistas em TIC. No topo, a Bulgária, Roménia e Letónia, onde por cada 4 homens havia uma mulher especialista em TIC.

Para Ana Neves, antes de haver mulheres em carreiras de TIC, é preciso tê-las nas escolas, já que “muito poucas raparigas consideram cursos nas áreas das tecnologias”. As escolhas vão sendo “moldadas” pelo contexto social.

Quando os bebés nascem, por exemplo, os brinquedos são todos iguais. A questão da diferença começa a afirmar-se a partir de certa idade quando os pais começam a influenciar as escolhas. Não vou deixar que a minha filha se mascare de robô no Carnaval, porque isso é para menino. Essa divisão de género começa a ser imposta pelos pais, pelos irmãos, pelos brinquedos e pelos preconceitos que se sentem nas escolas, mais do que pelo gosto inato da pessoa”, considera.

No entender de Teresa Chambel, as raparigas têm “valências interessantes” para trabalhar nesta área que se tem alterado ao longo do tempo, deixando de ser “limitada” em domínios de trabalho e de aplicação.

É uma área universal e as pessoas trabalham cada vez mais em áreas multidisciplinares, associadas a outras, que, naturalmente, atraem outras raparigas. As raparigas com a sua criatividade e capacidade de relacionar diferente temas, adequam-se a esta perspetiva atual”, considera.

“Ter uma segurança para o resto da vida”

Nancy Brito considera que os processos de recrutamento têm de ser melhorados. “As pessoas que decidem quem vai trabalhar na empresa têm de ter consciência de que ter mulheres na empresa é mais benéfico. E isso já está mais do que provado. Há estudos a dizer que uma equipa equilibrada é muito melhor do que uma equipa só de homens ou só de mulheres”, sublinha. Surge o velho tópico da discriminação positiva. A investidora defende a implementação de um sistema de quotas.

Temos de estar constantemente a ver quantos homens e mulheres temos nas equipas. Se vou contratar mais uma pessoa e há dois candidatos – uma mulher e um homem – devo dar primazia à mulher”, considera.

As medidas propostas pelo grupo de trabalho, organizado pela APDSI, têm como objetivo “atacar” o problema desde que ele começa: na infância. Foi proposta a criação de uma disciplina para alunos do 7.º, 8.º e 9.º ano para dar informação sobre as áreas profissionais e vias de ensino disponíveis e a realização de um estudo para entender as razões pelas quais as raparigas não escolhem percursos escolares na área das TIC.

No campo dos media, foi sugerida a realização de vídeos publicitários com mensagens “fortes e provocadoras”, que divulguem a ligação entre mulheres e as TIC, e a inclusão de mulheres com ocupações ligadas às TIC em séries televisivas, campanhas publicitárias e documentários. Foi ainda proposta a criação de uma coleção de livros de aventura em que as personagens femininas sejam as heroínas e utilizem as tecnologias para atingir os seus propósitos. Estas medidas vão agora ser discutidas e trabalhadas pela APDSI e pelo Fórum dos Cidadãos para que depois possa ser estudada a sua implementação.

Escolher este caminho [das TIC] tem vantagens enormes. É a vantagem de poder trabalhar em qualquer empresa, só por saber de informática. É útil às mulheres perceberem que têm aqui uma segurança para o resto da vida. Sabemos que o futuro vão ser os robôs e é preciso alguém para os pôr a funcionar. A inteligência artificial vêm aí e isso quer dizer que vai haver ainda mais empregos na área. É este o testemunho que eu quero passar às jovens. Que saibam que não vão só aprender um curso, mas que vão arranjar uma ferramenta de trabalho”, remata Nancy Brito.