“Decidi que este seria o meu último jogo com esta camisola”, escreveu Abel Camará na sua conta oficial do Instagram, acompanhado de uma imagem com o equipamento com que defrontou o Sporting, incluindo as caneleiras com imagens da família e dos clubes por onde passou, com o Belenenses em foco.

O clube do Restelo fez história em Alvalade, o avançado quis acabar a sua história pelo clube do Restelo. Em conferência de imprensa no auditório Artur Agostinho, acompanhado por Rui Pedro Soares, presidente da SAD, e Domingos, treinador do conjunto azul, Abel Camará explicou o porquê da decisão. Sublinhou que será sempre adepto do Belenenses, mas que “era o melhor momento para tomar a decisão”.

Saio de cabeça erguida e muito feliz num momento em que, depois de sete jogos a perder, conseguimos vencer em Alvalade após 62 anos. Depois da Liga Europa, consigo mais uma vez entrar na história deste clube. Mas sinto que está na hora de deixar este clube enorme que me deu tudo. Agradeço a este grande homem que é Rui Pedro Soares, que fez tudo para me proteger, mas tenho de pensar na minha família. Vou ser pai na próxima semana e não posso viver neste clima”, disse, visivelmente emocionado com o turbilhão de sentimentos que viveu esta semana.

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Do aperto no Restelo à invasão do treino

Tudo começou no passado domingo à noite, após a derrota do Belenenses no Restelo frente ao P. Ferreira. À saída, Abel Camará, capitão de equipa, terá levado um “aperto” por um grupo de adeptos, que, de acordo com o jogador, terão mesmo tentado agredir a companheira, que está no final da gravidez. No dia seguinte, e quando já circulavam alguns vídeos do momento de tensão, o avançado emitiu um comunicado a esclarecer o que se tinha passado.

“Esta é a minha oitava época de ligação ao Os Belenenses. Cheguei em 2008, para o escalão de juniores, para uma equipa que, treinada pelo actual seleccionador de sub-21, ficou em terceiro lugar na zona Sul do campeonato nacional. Desde então, servi a equipa sénior, na primeira e na segunda divisão, e estive cedido a outros clubes, em Portugal o Estrela da Amadora e Beira-Mar, e no estrangeiro o Petrolu, da Roménia, e o Al-Faisaly, da Arábia Saudita. No total, como sénior, já vesti a camisola do clube mais de cem vezes – 122, para ser mais exacto. Sou internacional pela Guiné Bissau.

E a verdade é que aguentei muito. Desde a época em que regressei da cedência ao Petrolul, em 2014/15. Nessa temporada, convém recordar, conseguimos o apuramento para a Liga Europa, mas também não me esqueço de que fui insultado logo no primeiro jogo de preparação, contra o Oriental. O grupo e toda a estrutura, liderada pela Presidente Rui Pedro Soares, não deixaram que um pequeno grupo de gente que se assume como anti-Belenenses SAD me incomodasse ou desestabilizasse a equipa e, pouco a pouco, fomos superando o sucedido.

Este ódio por parte dessa pequena facção vem da época 2011/12. No final de um jogo contra o Sporting da Covilhã, alguns adeptos manifestaram a sua legítima insatisfação, mas houve então um grupo que resolveu rodear e insultar a mãe do nosso capitão da altura, Sérgio Barge. Nesse momento resolvi intervir, separei as pessoas e acalmei a situação, tendo posteriormente sido acusado de ter agredido esses adeptos. Até hoje, contudo, ninguém o provou nem apresentou queixa. Se tivesse havido incorrecto da minha parte, por que não teriam apresentado queixa?

Na semana seguinte, jogámos contra o Trofense e infelizmente perdemos. No final do encontro, e como sempre sucede – como sucedeu, de resto, no último domingo -, alguns dos meus familiares e amigos aguardaram a minha saída do estádio. Mais uma vez, um grupo de adeptos acusou-os de agressão e de terem mostrado facas e armas. Até hoje, mais uma vez, ninguém o provou nem apresentou queixa. E após cada jogo no Restelo os mesmos familiares e amigos continuam a aguardar a minha saída, exactamente no mesmo local.

Infelizmente, por razões que realmente me ultrapassam e que até hoje não consigo entender, a situação tomou outros caminhos e um pequeno grupo de desordeiros espera sempre uma falha minha para me atacar e desestabilizar, como voltou a acontecer no jogo deste domingo, contra o Paços de Ferreira. Não conseguem, desde logo porque serão sempre mais os que me apoiam dos que os que me assobiam. E porque tenho uma personalidade forte e saio sempre de cabeça erguida, seja de um jogo ou de um treino, e com a consciência de tudo ter dado pelo Belenenses.

Este domingo, à saída do estádio, quando esperava a minha companheira, deparo-me com um grupo de desordeiros a insultar-me e a tentar agredir-me. Um deles tentou inclusivamente agredir a minha companheira, que está grávida. E isso eu não admito. Assobiar e insultar faz parte, infelizmente, da vida de jogador, e faz parte sobretudo da cultura desportiva que desde algum tempo se instalou em Portugal. Mas partir para a agressão é algo intolerável e que jamais admitirei. Sendo certo que basta ver as redes sociais para saber que tudo isto e uma campanha organizada, e todos sabem quem são as pessoas que a organizam e incentivam.

Apesar do sucedido, e porque a minha ligação ao Os Belenenses não começou ontem, e sobretudo porque sou um profissional sério e dedicado, continuarei focado em ajudar a equipa, que muito me orgulho de capitanear, a terminar a temporada da melhor forma. O meu percurso no futebol profissional já é longo e felizmente por onde tenho passado todos, sem excepção, têm reconhecido a minha dedicação e o meu carácter. E é isso que me faz ter a consciência tranquila.”

No dia seguinte, o plantel do Belenenses deslocou-se na totalidade ao Sindicato de Jogadores, onde foi organizada uma conferência de imprensa. “O Sindicato está do lado do Abel, reafirmando que episódios lamentáveis como estes continuam. O Abel é uma excelente pessoa, um ótimo profissional e capitão de equipa. Devemos repudiar comportamentos violentos e reforçar que episódios como este continuam a acontecer no futebol português. Queremos que todos os responsáveis sejam identificados e punidos em conformidade. É possível acabar com este clima de impunidade e hipocrisia que existe no futebol português. Tolerância zero para insultos racistas ou xenófobos”, salientou Joaquim Evangelista, líder do órgão.

Já os sócios e adeptos do clube, que estão em guerra aberta com a SAD, desmentiram as ocorrências e falaram em manobras promovidas pela sociedade do futebol do Restelo. Este sábado, um grupo de 70 pessoas invadiu mesmo o treino, pedindo explicações pelo momento desportivo que se vivia e pedindo a demissão do líder da SAD.

Foi uma manifestação de preocupação com a fase mais negra da história do clube, com sete derrotas consecutivas, mas também um protesto para repor a verdade. Um protesto à SAD, que coloca os jogadores contra os sócios, que são quem alimenta o clube. Esta SAD dividi para reinar. Não houve qualquer tentativa de agressão a ninguém, a conferência decorreu no mesmo dia em que as contas da SAD eram apresentadas com um enorme passivo. Foi uma manobra para desviar as atenções do que realmente está a acontecer na SAD. Viemos pedir respeito pelos sócios. Viemos pedir a saída de Rui Pedro Soares”, declarou Sérgio Camões, porta-voz da ação, ao jornal Record.

“Este protesto nada tem a ver com luta de guerrinhas. Não somos assassinos, não somos agressores de grávidas, nem racistas. Só queremos que a democracia volte ao Belenenses. Os sócios querem ter uma voz, querem voltar a ser parte dos destinos do clube. E Abel Camará tem de deixar de envergar a braçadeira de capitão“, acrescentou.

Este domingo de manhã, em Alvalade, veio a “resposta”: o Belenenses ganhou, quebrando um jejum de triunfos fora frente ao Sporting que perdurava desde 1955; e Abel Camará, que deixou de ter a braçadeira, que passou para Gonçalo Silva, marcou o golo do empate, de penálti, e anunciou que vai sair do clube. No meio de tanta confusão, alguém saiu a ganhar? Se calhar não. Apesar do resultado de hoje.