O diretor do FBI soube que tinha sido demitido pela televisão quando se encontrava em Los Angeles a dar uma mini-palestra a agentes seus. À noite, James Comey deveria ir ainda a Hollywood dar uma conferência a recrutas. Já não foi. O filme acabou por ser, mesmo, o seu afastamento. Mas o argumento é muito intricado.

A carta da demissão foi entregue, em mão, pelo guarda-costas de Trump na sede do FBI, em Washington. Comey até é republicano e provavelmente o principal responsável pela eleição de Trump, mas nem isso o livrou da mais temida frase do presidente americano: “You’re fired”. A investigação às ligações da campanha de Trump à Rússia terá sido fatal para Comey. Há 45 anos que um presidente dos EUA não demitia o homem forte do ‘bureau’. E na última grande investigação a um presidente norte-americano, Richard Nixon, acabou por cair. Há um novo Watergate em Washington? Quem é afinal o homem afastado por Trump? E o que levou realmente ao seu afastamento?

As dúvidas são muitas. Reunimos as principais.

Quem é James Comey? O que investigava?

James Comey tem uma carreira proporcional à sua altura: 2,03 metros. É republicano e foi o número dois do Departamento de Justiça no tempo de George W. Bush. Seria contudo com o democrata Barack Obama que se tornou no sétimo diretor do FBI. Nasceu em Yonkers (Nova Iorque) a 14 de dezembro de 1960 (tem 56 anos), mas cresceu em Allendale (New Jersey). Formou-se em Direito na Universidade de Chicago em 1985.

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Após a faculdade, Comey tornou-se assissente do juiz da comarca de Manhattan, John M. Walker Jr. A carreira de advogado seguiu depois no escritório de advogados nova-iorquino Gibson, Dunn & Crutcher. Acabaria por passar para o Ministério Público: trabalhou entre 1987 e 1993 no gabinete do procurador para o Distrito Sul de Nova Iorque e chegou a chefe-adjunto da Divisão Criminal. Notabilizou-se por ter gerido o processo da família Gambino (máfia italiana em Nova Iorque). De 1996 a 2001 foi também professor de Direito na Universidade de Richmond e advogado de vários serviços do Estado. Um deles, o Comité Whitewater do Senado, já investigava Hillary Clinton e as alegadas ilegalidades do casal Clinton num negócio imobiliário.

Comey tornou-se procurador-geral do Distrito de Sul de Nova Iorque em 2002, onde ficou até ser nomeado vice-procurador-geral dos EUA pela administração Bush em dezembro de 2003. Ficou até agosto de 2005, altura em que passou a dedicar-se à gestão empresarial. Tornou-se vice-presidente da empresa de produtos aeroespaciais Lockheed Martin até, cinco anos depois, assumir o cargo de diretor-geral da Bridgewater Associates, de onde só saiu no final de 2013. Fez também parte do Conselho de Administração da HSBC Holdings até julho de 2013.

Em setembro de 2013, então com 52 anos, Comey foi nomeado por Barack Obama diretor do FBI. Obama fez então rasgados elogios ao republicano por ter feito oposição ao programa de espionagem da NSA defendido pelo Administração Bush em 2004, do qual questionou a legalidade. “Ele estava preparado para abandonar um emprego que gostava para não ser parte de algo que sentia ser fundamentalmente errado”, disse Obama, referindo-se à ameaça de demissão feita então por Comey. “Conhecer Jim Comey é também conhecer a sua feroz independência e a profunda integridade (…). Ele é uma dessas figuras raras em Washington. Não se preocupa com política”, acrescentou Obama na tomada de posse de Comey.

Jim deveria ficar dez anos, mas colocou-se no olho do furacão quando decidiu reabrir a investigação aos emails de Hillary Clinton em outubro de 2016, a apenas 11 dias antes das eleições presidenciais. Hillary culpou-o pela derrota. Por ironia, foi demitido na terça-feira por Donald Trump, que terá beneficiado da sua decisão para chegar à Casa Branca.

Como Jim influenciou as eleições americanas?

Tudo começou quando Hillary Clinton era chefe da diplomacia da administração Obama, entre 2009 e 2013. Em março de 2015, soube-se que a secretária de Estado teria utilizado “diversos dispositivos pessoais” e criado contas de email através de um servidor na sua casa, em vez de utilizar o email com a terminação “state.gov” que estava hospedada nos servidores do Governo norte-americano, logo (muito) mais protegida.

O FBI, gerido por Comey, acabou por concluir a investigação em julho de 2016, dizendo que Hillary foi “bastante descuidada“, mas que não deveria ser processada já que não cometera qualquer ilegalidade. O processo foi então arquivado. O assunto não morreu politicamente, mas Hillary manteve-se confortavelmente à frente de Donald Trump nas sondagens. A 28 de outubro, tudo mudou.

A 11 dias das eleições presidenciais, o diretor do FBI, James Comey, reabriu a investigação a Hillary Clinton pelo uso do seu ‘email pessoal’ para tratar de assuntos do Governo. Em causa estava a análise a novos emails.

O FBI teve conhecimento da existência de emails que parecem pertinentes para a investigação (…) O FBI deve tomar as medidas de investigação adequadas para permitir que os investigadores avaliem esses emails, para determinar se eles contém informações secretas, bem como para avaliar a sua importância para a investigação”, escreveu Comey ao Congresso.

Mesmo que o diretor tenha dito que não se sabia se os novos emails eram “significativos”, a partir do dia que o FBI anunciou a reabertura da investigação, Hillary começou a cair nas sondagens ao mesmo ritmo que Trump subia. O candidato republicano aproveitou, no imediato, para classificar aquele como “o maior escândalo político desde o Watergate.” Trump jogou com a nuvem de suspeição que passou a pairar sobre Hillary.

A 8 de novembro, Donald Trump seria eleito presidente dos EUA. Os democratas culparam no imediato o diretor do FBI. A própria Hillary Clinton numa reunião com apoiantes após as eleições disse que existiam “muitas razões para explicar por que motivo uma eleição não é um sucesso”, mas que a “análise [da campanha] é a de que a carta de Comey levantou dúvidas irracionais, infundadas, por provar, que travaram o nosso momento.

Já a 3 de maio deste ano, Hillary voltou à carga: “Se as eleições tivessem sido no dia 27 de Outubro, eu seria Presidente”, referiu Clinton, citada pela Reuters. A candidata admitiu que não fez “uma campanha perfeita”, mas estava no “caminho para a vitória até à conjugação entre a carta de Comey e o Wikileaks russo”.

James Comey, em audiência no mesmo dia no Comité Judicial do Senado, confessou que se sente “enjoado” quando pensa que o seu anúncio poderá ter influenciado os resultados eleitorais, mas também disse não estar arrependido, já que seria “catastrófico” esconder a decisão da reabertura da investigação.

Quando começou o diretor do FBI a irritar Trump?

Embora, muito provavelmente, Trump deva a sua eleição a James Comey, o presidente dos EUA nunca morreu de amores pelo diretor do FBI nomeado por Barack Obama. Mas a gota de água terá sido mesmo as declarações de Comey quando foi ouvido no Senado, a 20 de março, e confirmou que o FBI estava a investigar as ligações da Rússia à campanha presidencial de Trump.

“Temos a prática de não confirmar investigações em curso”, começou por explicar James Comey com alguma tosse à mistura, “mas em situações extraordinárias em que há interesse público, nós tornamos isso público”, avançou o diretor do FBI. “Fugas sobre informação confidencial são graves, são crimes graves”, reforçou na audiência perante os senadores, confirmando a investigação: “O FBI, no seu esforço de contra-informação, está a investigar os esforços do Governo russo para interferir na eleição presidencial de 2016”. Em termos gerais, disse Comey, “os russos estão sempre a tentar perceber quem são os próximos líderes e qual o nível de influência” que se pode exercer sobre os candidatos à Casa Branca.

No final de março, Donald Trump classificou a investigação às ligações da sua campanha à Rússia — com destaque para o seu conselheiro para a Segurança Nacional, Michael Flynn, entretanto afastado por ligações ao Kremlin — como uma “caça às bruxas de proporções históricas“.

Em nova audiência do Senado, a 3 de maio, James Comey foi questionado sobre se Donald Trump podia vir a ser alvo da investigação do FBI. O diretor do FBI recusou, então, a fazer uma “especulação injusta”. No entanto, deixou um aviso que a administração Trump pode ter considerado ameaçador: “Nós seguimos as provas onde quer que elas nos levem”. Embora se tenha apressado a acrescentar: “Não estou do lado de ninguém”. Não quis dizer se Trump seria alvo, mas colocou-se ainda mais na mira do presidente dos EUA.

Como Trump demitiu Comey?

James Comey soube pela televisão que tinha sido demitido por Donald Trump. O diretor do FBI estava num encontro com agentes do FBI em Los Angeles quando a notícia começou a passar nas televisões. Comey ficou surpreendido, contaram ao Los Angeles Times fontes do FBI, mas continuou a conversa com os seus subordinados. Há até relatos na imprensa americana de que Comey achou que se tratada de uma partida. Pouco depois, a notícia foi ocupando todos os ecrãs televisivos e Comey acabou por retirar-se para a sala ao lado para uma conversa com os seus assessores. Comey ia dar uma palestra numa atividade de recrutamento do FBI em Hollywood, mas rapidamente seguiu num jato para Washington.

Trump é conhecido pela forma cruel e intempestiva com que afasta os trabalhadores das suas empresa. “Está despedido!”, é, aliás, a frase de marca do reality show que conduziu: “O Aprendiz”. Os moldes desta demissão também não foram os mais institucionais. A carta de demissão, garante a CNN, não foi entregue por um enviado do Governo ou por um representante do Departamento de Justiça, mas em mãos na sede do FBI pelo principal guarda-costas de Trump, Keith Schiller.

Qual a justificação (oficial) para a demissão?

A justificação oficial é que o afastamento de James Comey está relacionado com a forma como geriu a investigação aos emails enviados por Hillary da sua conta pessoal quando era secretária de Estado. Na carta que Donald Trump enviou a Comey não é especificado o motivo, mas a Casa Branca divulgou uma outra carta que o procurador-geral adjunto dos EUA, Rod Rosenstein, enviou ao Presidente a lembrar o caso Hillary: “Não posso defender o diretor [do FBI] na forma como lidou com o inquérito aos emails da secretária de Estado [Hillary Clinton] (…) assim como não entendo a sua recusa em aceitar o julgamento quase universal de que ele estava errado [quando resolveu enviar ao Congresso uma carta na qual assumia que Hillary podia ter violado a lei]”.

Antes de ser conhecida esta carta, o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, já tinha colocado o ónus no Departamento de Justiça, afirmando que “o presidente aceitou a recomendação do procurador-geral [Jeff Sessions] sobre a demissão do diretor do FBI”. A responsabilidade da demissão foi assim, no mínimo, partilhada com Jeff Sessions.

Na carta de demissão, Donald Trump escreve a Comey que foi “removido do cargo, com efeitos imediatos”, já que chegou à conclusão que o diretor do FBI “não é capaz de liderar efetivamente” aquela entidade. Aproveitou também para dizer que “apesar de apreciar o facto de [o FBI] ter informado que não está a ser investigado”, concorda com o acórdão do Departamento de Justiça. O presidente dos EUA acrescenta ainda que é “essencial encontrar uma nova liderança para o FBI que restabeleça a confiança pública na sua missão vital de aplicação da lei”.

Ainda na terça-feira, Trump publicou uma pequena nota a dar conta que “o FBI é uma das instituições mais queridas e respeitadas da nação” e anunciava um ponto de viragem: “O dia marcará um recomeço para a nossa jóia da coroa [FBI] da aplicação da lei”.

Qual o verdadeiro motivo da demissão?

É sempre uma avaliação subjetiva, mas a maior parte dos comentadores norte-americanos, bem como as análises dos principais órgãos de comunicação social, apontam como motivo da rutura o facto do diretor do FBI estar a investigar as ligações da campanha de Trump à Rússia. É essa também a opinião da oposição democrata.

Segundo a CNN, o líder da minoria do Senado, Chuck Schumer, revelou que já telefonou a Trump a dizer que este cometeu um erro terrível. E questionou: “A investigação estava a chegar assim tão perto de casa do Presidente?”

Trump não pára de tweetar a denunciar que os democratas sempre foram críticos de Comey, desde logo o próprio Chuck Schumer.

Trump garante ainda que James Comey vai ser substituído por alguém que fará um “trabalho melhor” e que trará de volta o “espírito e o prestígio do FBI”.

Até o senador republicano Richard Burr — que lidera a comissão do senado que investiga a influência russa nas eleições — se mostrou apreensivo com a demissão, dizendo que é uma perda “para o FBI e para a nação”. E acrescentou: “Estou preocupado com o momento e a justificação da demissão do diretor Comey. Conheço o diretor Comey como um servidor público irrepreensível e sua demissão confunde ainda mais uma investigação já difícil do comité.”

O também republicano John McCain admitiu que “o presidente tem a autoridade legal para despedir o diretor do FBI”, mas confessou estar “dececionado com a decisão do presidente despedir James Comey.”

O adversário de Hillary nas primárias republicanas, Bernie Sanders, adverte que a decisão de afastar o diretor do FBI nesta altura “levanta sérias questões sobre o que está a Administração [Trump] a esconder”. Para o senador democrata a investigação isenta fica comprometida, já que o novo diretor “não irá conseguir conduzir objetivamente a investigação à Rússia”. Bernie Sanders pede, por isso, uma investigação independente.

O caso Comey é “mais perigoso” que o Watergate?

Desde o caso Watergate, que culminou na demissão de Richard Nixon, que um presidente não demitia um homem que conduzia a investigação contra si. Desde logo surgiram comparações com o “Massacre de sábado à noite” em outubro de 1973, quando Nixon ordenou o demissão de Archibald Cox, o procurador que conduzia a investigação ao envolvimento do Presidente republicano no assalto aos escritórios do Partido Democrata.

O editorial do New York Times fala num “óbvio paralelo histórico à ação de Trump com o chamado massacre de sábado à noite”. No mesmo texto, o NYT lembra que agora “não existe nenhum procurador especial para determinar se a confiança pública foi violada e se a presidência foi efetivamente conquistada gaças a uma potência estrangeira hostil. Por isso, o país chegou a um momento ainda mais perigoso.”

O editorial começa precisamente a dizer que “o povo americano exige uma investigação completa e imparcial sobre a extensão da intromissão da Rússia com a eleição presidencial de 2016 a favor de Donald Trump.” Isto porque “ao despedir o diretor do FBI, no final da tarde de terça-feira, o presidente Trump lançou séria dúvida sobre a viabilidade de qualquer investigação futura sobre o que poderia ser um dos maiores escândalos políticos da história do país.

Quem é o sucessor de Comey?

O procurador-geral, Jeff Sessions, e o procurador-geral-adjunto, Rod Rosenstein, já estão a entrevistar potenciais diretores interinos do FBI, revela a CNN. Andrew G. McCabe, que ontem se tornou automaticamente diretor interino do FBI, está na lista de entrevistados, que serão entre quatro a oito pessoas.

A decisão pode ser conhecida já esta quarta-feira ou, no limite, quinta-feira. Os candidatos não estão limitados a funcionários do FBI, mas o cargo tem de ocupado por alguém com experiência em Direito.

Andrew McCabe foi nomeado vice-diretor do FBI em janeiro de 2016 por James Comey. E também já tem as suas polémicas. Durante a campanha de 2015, a sua mulher, Jill McCabe, concorreu para um lugar no senado no Estado da Virgínia e recebeu doações no valor de mais de 675 mil dólares (618 954 euros) da organização política de Terry McAuliffe e do Partido Democrata da Virgínia. Por este facto, os republicanos criticaram McCabe por não se ter afastado das investigações em torno dos e-mails de Hillary Clinton.

McCabe foi ainda criticado, tal como Comey, por ter conversado com a Casa Branca relativamente às investigações que decorrem relativamente às ligações à Rússia, o que será uma violação dos regulamentos.