Nuno Nazareth Fernandes é um homem de mil faces, desde as artes gráficas à música, passando pela escrita e pela fotografia, houve criatividade para tudo. “Talvez tenha começado pela ilustração”, confessa. Nasceu em 1942, andou no Colégio S. João de Brito, em Lisboa, onde fez os seus primeiros trabalhos em artes gráficas e inventou um “modelo de negócio” inovador: “Com 13 ou 14 anos já fazia histórias de banda desenhada que na hora do almoço alugava aos meus colegas. A malta lia e pagava uns trocados. Eram romances que eu lia e punha aquilo em banda desenhada. Mais tarde comecei a ilustrar capas de livros.”

Depois, “naturalmente”, esteve sempre acompanhado pela música: “Tanto a minha mãe como o meu pai tinham curso superior de piano. Desde os 5 anos que ia ao S. Carlos ver as óperas. Tenho uma influência clássica bastante grande. O meu avô era um dos grandes mecenas do seu tempo, o Joaquim Agostinho Fernandes, um industrial de conservas que ganhou muito dinheiro. Também ficou conhecido por ser o fundador da Portugália Editora e por ter sido editor da Contemporânea”. Diz-nos Nuno que o avô “ganhava muito dinheiro e gastava-o a proteger artistas”. “Tanto na literatura como nas artes” envolveu-se em várias tertúlias onde o avô estava presente, tertúlias onde participavam “ilustres como Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira ou Almada Negreiros”.

Aprende a tocar o primeiro instrumento aos 7 anos, escolheu o violino: “A minha mãe comprou um violino e comecei a ter aulas. Ao fim de 6 meses, como só conseguia arrancar um mugido de uma vaca e mal imitado, desisti”. Teve aulas de piano, por influência da mãe, mas acaba por deixar de as frequentar. “A música era ensinada de uma forma terrivelmente aborrecida e chata, hoje em dia já não é asim”. Apaixona-se por uma “fulana que era alemã, governanta de um fulano que tinha uma casa ao lado do meu avô”. “Comecei-lhe a fazer serenatas. Mas, depois, realmente, levar o piano para o telhado não dava muito jeito”. É então que começa a aprender viola com Duarte Costa e, depois, Fernando Alvim — guitarristas históricos de fado –, até “ao início dos anos 60, primeiro para engatar raparigas e depois começa como uma coisa a sério”. As primeiras composições assina-as para a sua primeira esposa. Pouco depois, Mário Martins, A&R da Valentim de Carvalho, repara no seu talento.

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Depois o vento mudou

Não houve convite para o Festival RTP da Canção, “na altura não havia convites”, diz. “Hoje há convites, na altura não. No tempo opressivo que se vivia havia esse momento de democracia. Havia um concurso rigoroso sob pseudónimo e quem quisesse concorria. Havia um júri de seleção, depois ia por aí fora”. A composição era enviada sem nada gravado, apenas um trecho em papel, com o arranjo de piano. Quem cantava a canção? Só se sabia depois. As composições eram disfarçadas “para o júri de seleção não detetar de quem eram, porque em termos de censura as coisas já eram muito complicadas e nós tínhamos que disfarçar”.

“O Vento Mudou”, “Desfolhada Portuguesa” e “Menina do Alto da Serra”, foram as 3 canções com que ganhou o Festival da Canção. Apesar do as conhecermos enquanto temas de Eduardo Nascimento, Simone de Oliveira ou Tonicha, quando foram composta não foram feitas a pensar em nenhum dos vocalistas.

Nazareth Fernandes desabafa que no caso de “O Vento Mudou”, com letra de João Magalhães Pereira, “quando a canção foi aprovada aquilo já estava pensado para ser para o Eduardo Nascimento. Por muitas leituras que existam hoje em dia, como a que diz que éramos dois estudantes rebeldes do Partido Comunista ou a outra em que tínhamos sido encomendados pelo Salazar ‘para levar um preto à Eurovisão’… É mentira, tudo isso é mentira. O Eduardo cantava muitíssimo bem, cheio de ritmo, rompia com aquilo que o jornalista João Paulo Guerra chamou de nacional-cançonetismo. Os pimbas da altura. Musicalmente, era uma coisa de rutura, e que tocava também na nossa influência da altura, a música anglo-americana. Fazíamos parte do grupo do [programa de rádio] ‘Em Órbita’, o programa mais conhecido com música popular cantada em inglês.”

Cruza-se com Ary dos Santos porque “ele era redator de uma agência de publicidade”. Uma agência que, para concretizar um produto, os põe em contacto. “O José Carlos (Ary dos Santos) era bem mais velho que eu, mas lembrava-me dele do Colégio S. João de Brito”. A ideia era lançar uma artista e torná-la num êxito. “Quem faz um filho, fá-lo por gosto” é o verso que persegue Simone de Oliveira no pré-25 de Abril mas a “Desfolhada Portuguesa” acaba por se transformar num hino.

Hugo Maia Loureiro participa com um tema da dupla em 1970 mas não a consegue manter no sucesso das anteriores, ficando-se pelo segundo lugar. O compositor não se fica: “Estava a escrever uma carta à minha primeira mulher a marcar a data de casamento. As pessoas já estavam escandalizadas porque tudo aquilo se arrastava. Eu disse: ‘Vamos casar e pronto’. Enquanto estava a escrever a carta, telefonei ao Zé Carlos para dizer ‘amanhã passo aí porque tenho aqui uma coisa que penso que é muito boa’. Portanto, a primeira parte da ‘Canção de Madrugar’ é feita quando eu lhe mostro o arranjo que tinha e ele percebe que é uma canção de amor. O génio do Ary era maior que qualquer canção… E transformou-a numa canção de amor à liberdade“. Nazareth Fernandes lembra que foi um grande escândalo a canção não ganhar: “E não ganhou porque quando a censura percebeu o que se estava a passar, aconteceram umas coisas estranhas ao nível do som”. A vingança foi “Menina do Alto da Serra” com Tonicha: “Decidi que íamos ganhar o festival”.

Já em 1968, confessa, sentira o assédio espanhol, “porque a Espanha queria organizar o festival no ano seguinte”: “Os espanhóis começaram 15 dias antes a convidar a nata da comunicação social dos vários países, meteram-nos todos em Ibiza e durante 15 dias fizeram-lhes uma lavagem ao cérebro sobre os encantos da Espanha. E, depois, o próprio festival foi organizado de uma maneira em que eu entrava no meu quarto e encontrava uma série de caixotes que não tinha lá posto. E o que eram os caixotes? Caixas de papelão com produtos espanhóis. Para chegar aos produtos tínhamos que furar 25 centímetros de espessura de prospetos turísticos”.

Sobre a Eurovisão de hoje, Nuno Nazareth Fernandes diz que “não tem nada a ver”: “O espírito que o fundou foi o da descoberta de novos valores. Eram descobertas tanto ao nível de autores como ao nível de intérprete. Esse espírito desapareceu. Era mais focado nas canções, hoje fico na dúvida sobre o que é isto, tudo menos canções. Há um grande aparato audiovisual, é mais um espetáculo de espalhafato do que outra coisa.”

E acrescenta que acredita na vitória da canção portuguesa. “Sou muito suspeito porque sou fã da Luísa Sobral. Acho que é uma belíssima compositora e intérprete. E acho que a canção é muito boa. Dá-me a impressão de que é uma grande história de generosidade por parte da Luísa em relação ao irmão. Sou sensível a essas coisas. Há um bom produto, talvez cantando pela Luísa fosse ainda melhor. Mas ele pode ganhar, também tendo em conta a miséria musical que é este festival. Para cativar tem de ser diferente, mas o produto tem de ser bom. E acho que a canção italiana, que por sua vez tem uma mensagem de crítica à sociedade, me parece pertinente e bastante forte. Vamos ver”.