Ponto prévio: o Pedro é meu amigo. Na infância, numa daquelas “peladinhas” de escola, fui disputar a bola com ele. Cheguei lá primeiro. Depois, o Pedro deu-me uma carga de ombro tal, que atirou comigo para os espaldares do ginásio. “Falta?! Falta de massa, só se for!…”, disse-me, altivo, a mim que tinha mais dois palmos de altura do que ele na altura. Perdoei-lhe. Mas percebi, então, que o futebol não era para mim, mas para ele. O Pedro podia ter sido o que quisesse — melhor e mais empenhado do que ele nos estudos não havia. Mas o Pedro, quando lhe perguntavam os professores o que queria ser, e enquando eu respondia “jornalista”, ele atirava sempre de chofre: “Futebolista… no Benfica!”

Passou lá 14 anos, o último dos quais no plantel de Camacho, onde pouco jogou e foi sempre a “sombra” de Miguel na lateral direita. Não espera voltar ao Benfica. Aos 29 anos, não. Nem com Rui Vitória lá, treinador que foi dele nos juniores benfiquistas, treinador que o foi buscar a Espanha e o treinou no Fátima, o mesmo treinador que, quando o Pedro jogava em Itália, o trouxe para o Vitória de Guimarães e, mesmo quando se lesionou gravemente e esteve um ano na enfermaria, pediu à direção do clube que renovasse com ele.

“Ele [Rui Vitória] foi alguém que começou de baixo e tudo aquilo que conquistou foi através do trabalho. Tinha a certeza que ele não ia desperdiçar uma oportunidade que ansiava há tanto tempo. Sabia que ia dar tudo aquilo que tivesse e mais alguma coisa para ser bem sucedido no Benfica.” Vitória é campeão, pela segunda vez, e o Benfica tetra.

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Estou?
Pedrinho! Como é que estás?
‘Tá tudo, amigo, ‘tá tudo…

Quero falar contigo sobre a tua relação com o Rui Vitória. Ele treinou-te quatro épocas: duas nos juniores do Benfica, depois no Fátima e, por último, no Guimarães.
Exatamente, exatamente.

A primeira vez que ele te treina é em 2004/05, o teu primeiro ano de júnior no Benfica. Mas nesse primeiro ano ainda apanhas muita gente da geração anterior à tua, a de 1986. Como é que te correu esse primeiro ano com o Rui Vitória? “Calçaste”?
Essa época até me correu bastante bem. Comecei logo a época a jogar e, depois, fiz bastantes jogos. Acabei por sair por causa de uma lesão. Tive pubalgia. Mas começou bem. Nessa altura já se notava que ela era um treinador diferente de todos aqueles que eu tinha apanhado na formação do Benfica, mais avançado em tudo. Nós éramos miúdos, mas treinávamos como seniores, entendes?

Mas que diferença era essa?
Naquela altura nós notávamos muito a diferença a nível de metodologia de treino. Era diferente daquilo que nós tínhamos apanhado nos anos anteriores, como tal, notámos uma grande evolução, tanto a nível individual como a nível coletivo. A nossa equipa do início do ano para o final teve uma evolução brutal e acabou por perder mesmo no último jogo contra o Sporting — e nós tínhamos uma equipa com muito menos nomes do que o Sporting, mas acabávamos sempre por nos bater sempre de igual para igual.

Essa equipa de que estás a falar do Sporting é a de 1986: Moutinho, Veloso, Nani, Djaló…
Esses craques todos que o Sporting tinha, sim.

A tua equipa de 2004 era a do Bruno Baião, aquele médio que morreu depois do treino?
Não, não. Essa era anterior: do Jorge Almeida, do Luís Zambujo, do Manuel Curto. A de 1985, 86. O jogador assim mais conhecido que nós tínhamos era o Manuel Fernandes, que na altura também já começou a jogar na equipa B. Também tínhamos o Tiago Gomes, o lateral esquerdo. O Sílvio. Tínhamos uma boa equipa; não tínhamos se calhar tão boa equipa como o Sporting a nível de individualidades, mas tínhamos a nível de coletivo.

Tu fizeste a formação toda no Benfica. Com que idade é que chegaste lá?
Fiz a formação toda, sim. Houve apenas um ano — tinha seis anos na altura e ainda não tinha idade para competir nos escolinhas — em que treinava no Benfica duas vezes por semana e ia jogar ao Damaiense ao fim-de-semana.

Disseste-me que o Rui Vitória foi deferente da maior parte dos treinadores que apanhaste na formação e que evoluíste com ele. Mas em que é que ele foi, concretamente, diferente?
O que eu notei de diferente daquilo que tinha apanhado antes era, primeiro, o rigor que ele tinha. O mister era uma pessoa que sabia exatamente os treinos que queria fazer, de acordo com aquilo que nós tínhamos de melhorar e, para além disso, ele já era uma pessoa muito ambiciosa, via-se que não queria ficar por ali, que tinha objetivos maiores. E ele também nunca escondeu isso. E pronto, acabou por concretizar todos os objetivos a que se propôs, devido à competência e à vontade de melhorar e aprender. E depois acabou por seguir o caminho que toda a gente conhece, até estar agora nos seniores do Benfica com este sucesso todo.

Nessa altura vocês ainda não treinavam no Seixal, ainda não existia o centro de estágio como existe hoje.
Não, não existia. O Benfica teve uma evolução brutal nos últimos anos, mas na altura nós treinávamos muitas das vezes no Odivelas, sempre em sintético. Mas quando éramos juvenis ainda treinávamos no Palmense, nos Pupilos do Exército, era sempre em pelado. E mesmo nos juniores treinávamos no sintético do Odivelas, mas o Sporting na altura já tinha a academia. E então, a nível de condições, era uma diferença muito grande. Nós não tínhamos ginásio, não tínhamos todas essas condições que o Sporting tinha. E até nesse aspeto nota-se ainda mais a qualidade do trabalho do mister, porque ele acaba por não ter tantos recursos e acaba por fazer sempre equipas muito competitivas, com as quais nos conseguíamos bater de igual para igual contra o Sporting e contra o Porto — que nessa altura já tinham mais condições de treino. Era completamente diferente.

Essa tua equipa de 2004 — que ainda apanha malta de 1986 — tinha alguma qualidade. A geração seguinte, a tua, de 1987, é mais fraquinha, Pedro… Sem desprimor.
Sim. Não precisas de pedir desculpa, as coisas são o que são. A nossa geração, que apanhava os de 1987 com os de 1988, não tinha tanta qualidade quanto a geração anterior, e essa época até acabou por correr mal.

Vocês nem chegaram à fase final. Não tenho memória de o Benfica algum dia ter falhado a fase final…
Não, não chegámos. E ainda era o Rui Vitória o treinador. Não precisamos de estar aqui com rodeios: a equipa não tinha a qualidade que um clube como Benfica necessitava. E nesse aspeto, lá esta, o treinador pode ser muito bom, mas se também não tem matéria-prima, consegues sempre fazer um outro resultado bom, mas não há milagres. E depois ele também apanhou uma situação: o Benfica na altura tinha muitos jogadores estrangeiros.

Sim, sim. Sérvios, brasileiros, um da Austrália…
Era o Kaz Patafta. [risos] E tínhamos quatro ou cinco sérvios, ya. E acabava, até para o ambiente de balneário e tudo o mais, por não ser fácil, porque muita gente não falava português. E depois, como tu sabes, quando os jogadores na formação vêm do estrangeiro, normalmente são sempre apostas, porque vêm de equipas já seniores muitas vezes, são internacionais pelas camadas jovens desses países.

Mas o Rui Vitória olhava ao B.I. na hora de escolher?
Não, não. Até porque nesse ano chegou a jogar o Miguel Rosa por nós, o Romeu Ribeiro também — que eram de 1989. Se há coisa que ele não olha é para o Bilhete de Identidade. E ele já deu mais do que provas, nos diversos clubes por onde passou, que isso para ele não importa. E ele próprio diz: o que importa é o rendimento. Se tiver rendimento, independentemente de ter 17 ou ter 35 anos, ele vai confiar no jogador. Se fizer aquilo que ele deseja, isso com ele não há idades nem nacionalidades.

Diz-me uma coisa, Pedrinho: na fase dos juniores, sobretudo, há uma coisa que acontece muito. Ou duas. Uma: há os jogadores que, por culpa dos pais ou dos empresários, se sentem “Ronaldos” e pensam mais em saltar para os seniores do que em concentrar-se na época de juniores onde ainda estão. Por outro lado, há aqueles que têm talento, mas falta-lhes alguma coisa para melhorar competitivamente. Como é que o Vitória controlava os primeiros e motivava os segundos?
Ele para além de ser um excelente treinador ao nível do treino, técnica e taticamente, algo que controla com mestria, para além disso é um líder nato, um condutor de homens.

Mas precisava de levantar a voz e dar uma ou duas asneiradas no treino? Ou os jogadores respeitam-no, mesmo naquele tom que lhe conhecemos, sempre sereno?
Ele é como um pai para um filho. Há situações em que te passa a mão nas costas e te acarinha. Como noutras situações tem que te levantar a voz, para te espicaçar. Depende da personalidade do jogador — e ele nisso é muito perspicaz. Consoante a personalidade do jogador, ele sabe a melhor maneira de o motivar. Para alguns, a forma de motivação pode ser dar-lhe um bocadinho mais de carinho ou conforto, para outros se calhar a motivação de que eles necessitam é levar de vez em quando um berro.

E como é que era contigo?
O que te digo é que depende das situações. Quando cometes um erro por displicência, é normal que aceites uma reprimenda. Da mesma forma que quando falhas e sentes que estás a dar o teu melhor, ele consegue ver isso e não te vai julgar nem te vai criticar. Ele é um treinador que consegue distinguir as situações e ver se estás comprometido com a causa ou não. Se estiveres comprometido, se treinares no teu máximo, se te empenhares, mas o jogo não correr bem, é óbvio que ele não te vai criticar. É normal: todas as pessoas têm dias de trabalho, em todas as profissões, que não correm bem. A única coisa que o mister não tolera, e acho bem, é quando sente que o jogador não está a render por falta de empenho ou porque tem a cabeça noutro lado. Mas isso não acontece muito nos plantéis que ele costuma orientar, porque planeia as coisas bem, escolhe bem os jogadores que quer com ele.

Acreditas que foi a evolução que tiveste com ele nas duas épocas de júnior que te permitiu, na época seguinte, ficar no plantel sénior? Era treinador o Camacho. É verdade que não jogaste muito, mas também havia lá o Miguel no teu lugar.
Eu não sabia de todo que ia ficar nos seniores no ano seguinte. Foi uma oportunidade que me deram. Mas todos os jogadores que o apanharam notaram bastante a evolução. Não fui só eu. Só tenho pena de ter tido uma lesão que me afastou um bocadinho dos treinos e dos jogos, porque sei que se não tivesse tido essa lesão ainda teria evoluído muito mais. Foi um processo natural, acabei por ficar, mas já passou muito tempo e a vida continuou.

Depois dessa primeira época de sénior no Benfica és emprestado ao Olhanense, depois acaba o teu contrato com o Benfica e vais para Espanha, para o Ferrol. É o Rui Vitória que te traz de volta a Portugal e ao Fátima. Foi ele que te convidou, uma vez que vocês já se conheciam bem?
É engraçado: na altura tinha vindo de Espanha e fui ver, na fase final, no estádio da Luz, um jogo dos juniores, um Benfica-Sporting. Era a geração do Cedric, Wilson Eduardo, do David Simão no Benfica.

Era a geração de 1990.
Exatamente. Fui ver esse jogo e encontrei lá na bancada o Rui Vitória. Falámos, ele perguntou-me a minha situação, disse-lhe que tinha acabado contrato e que tinha a possibilidade de continuar em Espanha, mas que queria voltar para Portugal, porque lá não estava a ter a visibilidade que queria, e queria relançar a carreia cá. E ele disse-me que no Fátima já tinha proposto a renovação aos dois laterais direitos do plantel, mas que se alguma coisa não corresse bem [com as renovação], que já sabia que estava livre e tudo o mais. Depois, um dos laterais — na altura o Fátima tinha subido à II B — trabalhava e jogava, e como passaram a ser profissionais, ele não queria abdicar do trabalho, era um tal de Índio — o outro era o Duarte Machado –, tinha alguma idade, e não renovou. Ficou uma vaga e eu acabei por ir para lá. Foi um processo natural, as pessoas do clube falaram comigo, o mister conhecia-me, e voltei a Portugal. E ainda para mais era um treinador que podia ser interessante para a minha evolução.

E fizeste 30 jogos. Nada mal.
Correu bem, sim. Nós tínhamos uma equipa muito interessante, uma mescla de malta mais experiente com a irreverência dos miúdos, tínhamos muitos jogadores que fizeram carreiras boas: o Sami, o Heldon, o David Simão, o João Vilela.

Mesmo no Fátima, na II Divisão, ele era ambicioso?
Claro, claro. Ele nunca foi de ter grandes rodeios, sempre disse que queria chegar ao topo e não estava no futebol para passar o tempo. Na altura eu lembro-me que ele ainda era professor de Educação Física. E fazia as viagens de autocarro com mais uns jogadores até aos treinos. Ele na altura era professor em Alverca ou Vila Franca. E ele todos os dias fazia essa viagem de autocarro até Fátima. Mas via-se que ele estava talhado para outros voos.

Ele saiu do Fátima para o Paços. Mas tu não vais com ele, vais para Itália, para o Crotone — estiveste lá três épocas. Só se voltam a encontrar no Vitória de Guimarães.
Para ir para o Paços não tive nenhum contacto. Às vezes até falava com um adjunto do mister, mas acabou por não acontecer, porque na altura estava no Paços o Baiano — que hoje está no Braga –, e o Paços estava bem de laterais. O futebol muitas vezes é a oportunidade e não vais para um clube só porque as pessoas gostam de ti.

Mas vais para o Vitória de Guimarães com ele…
Exato, exato. Naquela altura o Alex acabou a carreira, só havia o Kanu, o mister necessitava de um jogador e acabou por surgerir o meu nome. Por vezes os jogadores pensam que os treinadores não lhes estão a dar a mão, que não os estão a ajudar, mas às vezes não é essa a circunstância. Às vezes um determinado clube já tem jogadores para a tua posição, os jogadores estão a corresponder, e não é o momento. E o futebol é o momento. Não sucedeu no Paços, sucedeu mais tarde, no Vitória.

Tu no Vitória chegaste a jogar a titular no começo da época, mas depois tiveste uma lesão grave.
As coisas estavam a correr relativamente bem até à lesão. Foi logo na primeira época e na segunda nem joguei por causa disso. A lesão foi depois do jogo contra o Porto, em que empatámos 2-2 em casa. Fiz uma fratura da tíbia e estive um ano parado, é uma lesão bastante chata. Não senti falta de apoio de ninguém no clube. Tanto o mister como o clube quiseram renovar comigo no fim da época, mesmo sabendo que não jogaria. Só posso agradecer-lhe. Porque se ele não tivesse dado o aval, não teria renovado. Ele era o treinador e ele é que toma as decisões. Só tenho que lhe agradecer o voto de confiança.

Estavas à espera que ele desse o salto para o Benfica? A verdade é que aquele começo de época, com a derrota na Supertaça, não lhe correu bem. Mas ele não se deixou abater…
É óbvio que se apanhas uma equipa que é campeã nacional é difícil, porque tens muito pouco por onde melhorar. Mais fácil seria se ele tivesse chegado ao clube numa época em que tivessem acabado em segundo ou terceiro — quando assim é, há uma margem de melhoria muito grande. A primeira fase foi mais de adaptação dos jogadores aos métodos dele e à forma de ele ser. Foi devido a essa adaptação, que é necessária, que os resultados não correram tão bem. Ele não se deixou abater, porque isso com ele é difícil. Ele foi uma pessoa que começou de baixo e tudo aquilo que conquistou foi através do trabalho. Tinha a certeza que ele não ia desperdiçar uma oportunidade que ansiava há tanto tempo de uma forma leviana. Sabia que ia dar tudo aquilo que tivesse e mais alguma coisa para ser bem sucedido no Benfica.

Tu és um miúdo da casa, fizeste a formação toda no Benfica. Surpreendeu-te que o Rui Vitória tivesse, por exemplo, apostado no Renato Sanches? Ou aquilo foi uma aposta só para agradar aos adeptos, que gostam sempre de ver alguém da formação no onze?
O facto de ele ter treinado as camadas jovens, o facto de ter sido professor e ter lidado durante tantos anos com os jovens, faz com que ele tenha uma sensibilidade maior para lidar com atletas como o Renato. Mas uma coisa também te posso garantir: se o Renato não tivesse qualidade, ele não o punha só porque os adeptos queriam, ou a direção pede. O que ele quer mais é ganhar. E meter os melhores. Se os melhores forem mais jovens, ele mete.

Esperas regressar ao Benfica um dia? Tens agora 29 anos.
O Benfica é um clube pelo qual eu tenho um carinho especial, porque passei 14 anos naquela casa. Gostaria de te dizer que ambiciono regressar ao Benfica, mas sou realista e isso não é realista. O que te digo é: tenho muito orgulho no passado que tive no clube, é uma casa da qual guardo excelentes recordações — apesar de não ter termos tido as condições que há hoje em dia.

Falaste de recordações. Certamente tens muitas. Eu recordo-me de uma: o dia em que o Jankauskas faz um golo no velhinho estádio da Luz e tu, que eras apanha bolas, entras no relvado para festejar com ele. Recordas-te?
Recordo, recordo. (risos) Fui apanha bolas no seniores, nos juniores — que era a equipa do Pepa, que agora é treinador. São memórias que nunca me esquecerei. Mas a vida continua e estou acima de tudo muito contente por o Benfica proporcionar hoje em dia aos jogadores da formação condições que eu na altura não tive. Fico contente.

Última pergunta: o Benfica é um justo campeão?
O campeonato é uma prova de regularidade, Tiago. E se o Benfica é campeão, é justo. Foi mais regular do que os adversários. E apesar de todas as contrariedades que o mister teve, sobretudo as lesões e as saídas de alguns jogadores — o Gaitán, o Guedes –, ele sempre disse uma coisa que nunca me vou esquecer: “O azar de uns é a sorte dos outros”. Ou seja, quando sai um entra outro, o mister confia, o jogador rende e vai continuar a jogar. Ele é assim: se o jogador render, vai ser aposta. Quando o Jonas se lesionou apareceu o Guedes, quando o Guedes foi vendido apareceu o Rafa, o que interessa, como diz o mister, é o rendimento.

Amigo, um abraço!
Um abraço, pá. Foi um prazer.