Salvador, o Sobral da onda certa para chegar à Eurovisão e fazer a diferença, para ser mais um e distinto de todos. É para quem quer e para quem pode. É para quem pega no melhor que tem — o que falta aos outros — e junta tal ingrediente ao caldo necessário para o efeito: não vacilar. Salvador não vacilou. Como se não tivesse ninguém à frente dele, chegou e cantou enquanto pensava “eu cá rio-me perante os nervos, nervos têm vocês”. Depois deixou o palco, esperou e ganhou. 758 pontos, à frente dos 615 da Bulgária. Perfeito.

E Luísa? A Sobral compositora, essa sim, a Sobral dos nervos. Foi fácil imaginá-la em angústia. Nos bastidores ou entre a multidão, a ver e a ouvir os seus dois meninos, o irmão e a canção que compôs. “Amar pelos Dois”. Título escolhido com tiques de jackpot. Se só a um é permitido cantar, então que o intérprete diga a #todagente que ela também esteve sempre no palco.

Luísa Sobral embrulhou emoção q.b. numa balada de piano-bar com bom fumo. As notas certas, os intervalos certos. o tempo exato para que o espaço que vai dos graves aos agudos deixasse todos à espera do verso seguinte. Como se faz num argumento bem feito para conquistar audiências em quantidade, “Amar pelos Dois” deixa o ouvinte pendurado, à espera da boa desgraça romântica que a letra vai confessar a seguir, e depois, e depois.

E a escolha do cantor. Luísa, dona da canção, podia ter-se chegado à frente, podia ter assumido a propriedade da obra, mas vai uma aposta: se tivesse sido essa a escolha, a fragilidade era outra e o resultado final também. Se queres uma coisa bem feita, fá-la tu. Ou então, passa-a ao teu irmão. E é fácil fazer as contas agora: o filme não teve falhas.

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“Não é fogo de artifício”

O prémio, em forma de microfone, foi-lhe entregue em mãos pela vencedora da edição anterior, a ucraniana Jamala. Qual dos dois é que tinha um sorriso maior na cara, é difícil de dizer. Num pequeno discurso após a entrega, Salvador Sobral pediu que a música deixasse de ser sobre “fogo de artifício” e que passasse a ser sobre sentimentos.

Vivemos num mundo de música descartável, de música fast-food, sem qualquer conteúdo. Penso que esta pode ser uma vitória para a música e para as pessoas que fazem música que realmente significa alguma coisa”, disse. “Música não é fogo de artifício, são sentimentos. Vamos tentar mudar isto e trazer a música de volta, que é o que realmente importa.”

Antes de interpretar, uma última vez, “Amar pelos Dois”, Salvador pediu a presença de Luísa no palco: “Quero que a minha irmã cante“. Já em palco, chamou a atenção do público, dizendo “acho que a deviam ouvir”. E o público ouviu. Fez-se silêncio em Kiev e, de telemóveis em punho, os presentes deixaram-se encantar mais uma vez pelo tema que sagrou, pela primeira vez, Portugal como vencedor do festival europeu.

A aldeia da roupa branca

A Eurovisão foi capaz de, ao longo dos anos, construir uma imagem que ainda hoje persiste. Quando nos sentamos à frente da televisão para assistir ao festival, sabemos o que esperar: lantejoulas, camisas berrantes e coreografias inacreditáveis, música para dar um pezinho de dança ou um pop de ficar no ouvido. Faz tudo parte do espírito Eurovisão, quer gostemos quer não. E esse é o segredo do sucesso do festival que, todos os anos, é assistido por milhares de milhares de pessoas em todos os pontos da Europa (e não só)

Neste sentido, o que se passou este sábado em Kiev (a cidade que recebeu a 62ª edição da Eurovisão) não foi melhor nem pior do que se passou nas edições anteriores: canções pop (que parece que já ouvimos em qualquer lado), um pouco de eletrónica e gente vestida de branco. A única surpresa foi mesmo a vitória de Salvador Sobral, com uma música que, segundo todos os estereótipos, não teria lugar num festival como a Eurovisão.

O segundo lugar já não foi tão surpreendente. Kristian Kostov, da Bulgária, cantou “Beautiful Mess” e convenceu uma boa parte dos europeus. Mas não o suficiente para levar para casa o microfone de cristal — ficou a 143 pontos de Salvador Sobral. Em terceiro lugar ficaram os populares Sunstroke Project, da Moldávia, que animaram a noite depois de uma atuação algo aborrecida das holandesas OG3NE (que dedicaram a canção “Lights and Shadows” à mãe). Com smokings pretos, um trio de noivas a acompanhar e uma coreografia de meter medo ao susto, os moldavos interpretaram “Hey Mamma” e transformaram a Eurovisão numa despedida de solteiro. O saxofonista Sergey Stepanov foi, como sempre, a alma da festa. Não fosse ele o tal “epic sax guy” do Youtube.

A belga Blanche — que já se tinha destacado na semi-final de terça-feira — ficou em quarto lugar com “City Lights”, uma das melhores canções que passaram pela Eurovisão (até conquistou os manos Sobral). Mas a introversão de Blanche meteu-se no caminho: durante os curtos minutos que esteve em cima do palco, fixou os pés no chão, agarrou-se ao microfone como se não houvesse amanhã e por ali ficou. Tensa, ia abandonando os braços e pouco mais do que isso. Apesar da qualidade da música, a falta de expressão geral foi capaz de matar o entusiasmo até do maior dos fãs. A voz, porém, ficou na cabeça.

O quinto lugar foi para o sueco Robin Bengtsson, um resultado de louvar tendo em conta o tema fraco que apresentou neste sábado, “I Can’t Go On”. Já a Itália, uma das favoritas, conseguiu apenas o sexto lugar com “Occidentali’s Karma”, interpretada por Francesco Gabbani. Feitas as contas, os italianos ficaram a 424 pontos de Portugal.

A Roménia decidiu apostar numa música “à americana”, com uma menina bonita com boa voz — Ilinca –, e um jovem cheio de “atitude” — Alex Florea. Só que a música não era bem aquilo que prometia ser — o refrão, uma espécie de tirolês, fez-nos esquecer que estávamos a ver dois jovens romenos e remeteu-nos para os tempos em que José Figueiras cantava em direto na televisão portuguesa. No final das contas, ficámos sem perceber o que é que a música, “Yodel It!”, era suposto ser. Ainda assim, o duo conseguiu alcançar o sétimo lugar.

Os últimos foram os primeiros, os primeiros foram os últimos

O israelita IMRI (cujo nome verdadeiro é Imri Ziv) foi o primeiro a subir ao palco. Com um visual simples (quase simples de mais para a Eurovisão), acompanhado de dois bailarinos, o cantor interpretou um tema dançável (o primeiro de muitos) mas que pouco ou nada tinha de original. Apesar de já não ser um novato nisto da Eurovisão (participou nas edições anteriores de 2015 e 2016 como backing singer), mostrou algumas fragilidades durante a interpretação do tema “I Feel Alive”, desafinando desastrosamente nos tons mais agudos. Apesar de ter entrado em primeiro lugar, IMRI foi dos piores classificados — ficou em 23º lugar, com 39 pontos.

Pior sorte teve a Ucrânia (que o ano passado ficou em primeiro lugar e que, por isso, teve a honra de receber a edição de 2017) e a Alemanha — o ucraniano O.Torvald, conseguiu 36 pontos com “Time”, e a alemã Levina, com “Perfect Life”, fez apenas 6 pontos. Em último lugar ficou a Espanha. Manel Navarro, acompanhado por uma banda, cantou “Do It For Your Lover”. Nem o ar de surfista o safou — conseguiu apenas 5 pontos.

O Festival Eurovisão da Canção regressa para o ano e será realizado em Portugal (dita a regra que o país vencedor seja o anfitrião da edição seguinte). Não conseguimos prever como irá decorrer aquela que será a 63ª edição do festival, mas uma coisa é certa: Portugal já fez história.