Tinha somente vinte e três anos, Patrick Modiano, quando escreveu La Place de l’Etoile. Era aquele, em 1968, o primeiro livro do escritor francês que, tantos anos depois, em 2014, venceria o prémio Nobel da Literatura – curiosamente ou não, Modiano recebê-lo-ia na mesma cidade de Estocolmo onde esta quarta-feira se disputou a final da Liga Europa. Em La Place de l’Etoile se lê, a paginas tantas, que a juventude é “a manhã profunda à qual não retornaremos mais”. José Mourinho nunca retornou, não à manhã, mas à noite de 9 de março de 2004. Como então, não retornou.

Tinha quarenta e um anos — entre treinadores é-se jovem com quarenta e um. E havia vencido, meses antes, a Taça UEFA pelo Porto. Em Old Trafford (onde agora é treinador do Manchester United e não adversário como em março de 2004) disputavam-se os oitavos-de-final da Liga dos Campeões. Os portistas haviam derrotado o United de Ferguson no estádio do Dragão por 2-1. Isto na primeira-não. Na segunda, um golo de Paul Scholes aos trinta e dois minutos colocou os ingleses em vantagem na eliminatória, golo que afastaria o FC Porto. Não afastou. A terminar, aos noventa minutos, Costinha empataria o jogo e eliminaria o United da Liga dos Campeões. Mourinho correu aquando do golo. Correu relvado fora, deslizou de joelhos, cerrou dentes, punhos e tudo, e era aquela, para Mourinho, a “manhã profunda” que Modiano escreveu.

Venceria a Liga dos Campeões (até à final derrotaria ainda o Lyon e o Deportivo, triunfando diante o Mónaco em Gelsenkirchen) e deixaria o Porto no Verão.

Rumou ao Chelsea. Foi campeão. Rumou ao Inter depois e voltou a sê-lo – voltando também em Milão a vencer a Champions. Em Madrid, com o Real, e apesar de ter coincidido com o apogeu do Barça de Guardiola, foi dele, Mourinho, a inédita La Liga dos cem pontos no final – só esta temporada, e desde que Mourinho saiu, o Real voltou a vencer o título. O regresso a Londres e ao Chelsea mudou-o. José não sorria mais. Vencia um jogo e não sorria. Não cerrava mais dentes, punhos e tudo. Faltavam-lhe talvez os títulos. Envelhecera talvez. Perdendo mais do que vencendo, deixaria o Chelsea. Em Manchester, e tendo conquistado as taças (EFL Cup e Community Shield) no ano de estreia, pouco se alterou nele e no sorria que se lhe não via. Terminou a Premier League no sexto lugar, fora dos lugares da Liga dos Campeões, a 24 pontos do Chelsea, o campeão – um campeão que guarda ainda o plantel que fora de Mourinho.

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Esta noite, em Estocolmo, diante do Ajax, vencendo, voltaria ao títulos europeus, o quarto título, aquele que Mourinho nunca ergueu — é certo que tem uma extinta Taça UEFA –, aquele que o Manchester United nunca ergueu: a Liga Europa. Talvez aí sorrisse. Talvez. O augúrio, para quem é de os ter, era bom. Disputava-se na Suécia a terceira final europeia entre holandeses em ingleses: em 1973/74, o Feyenoord venceu o Tottenham; em 1980/81 o Ipswich venceria o AZ. Mourinho podia desempatar a história. Mais: em seis jogos que disputou frente ao Ajax, Mourinho venceu os seis – com vinte golos marcados e dois sofridos.

A rolar que estava a bola, o United não a queria. Permitia que o Ajax a tivesse perto da defesa, se tanto até ao meio-campo, mas sem nunca deixá-lo chegar perto da baliza de Romero. Mas o Ajax chegou. Aos quinze minutos, por Traoré, chegou. Traoré e Lasse Schøne, à esquerda, viam-se rodeados por três camisolas (hoje azuis e não encarnadas como de costume) do United. Tabelaram, Schøne partiu para o um-contra-um frente a Valencia, ultrapassou o lateral como faca quente em manteiga, e cruzou para área. Traoré, entretanto, havia lá chegado, recebeu a bola na bota direita e remataria em seguida de canhota. Sergio Romero, atento na baliza, defenderia à segunda.

O United sentiu o toque. E tocou de tomar para si a bola, ao contrário do que acontecera até então. Pouco depois, ao dezoito minutos, Onana, guarda-redes do Ajax, foi traído por um desvio. Pogba, à entrada da área e de frente para a baliza — até a bola chegar ao francês andou de pé em pé, qual carrossel: Valencia, Mata, Fellaini, vira o disco e toca o mesmo –, puxou do pé esquerdo (que até é o menos bom) atrás e rematou, forte. A bola toca ainda em Davinson Sánchez, central dos holandeses, Onana caiu para o lado esquerdo, a bola seguiu para o centro, e o United vencia. Mourinho, sentado no banco, não festejaria.

Em todas as finais que Mourinho disputou na Europa, saiu sempre a vencer por 1-0 para o intervalo: Derlei contra o Celtic em 2003; Carlos Alberto frente ao Mónaco em 2004; Milito diante do Bayern em 2010.

No recomeço, aos quarenta e oito minutos, a defesa do Ajax foi “anjinha”. E Henrikh Mkhitaryan deixou o United com uma mão na taça. Canto de Blind à direita — confesso: desde que André Cruz jogava no Sporting que não tenho memória de ver um central bater cantos –, a bola cai na pequena área, Chris Smalling cabeceia, mas cabeceia sem força e a bola não segue para a baliza. Jöel Veltman e Mkhitaryan estavam ambos de costas voltadas para o guarda-redes Onana. O lateral do Ajax tentou cortar a bola de cabeça, o médio do United (num pontapé de bicicleta) chega lá com o pé primeiro e bate o camaronês na baliza. Mourinho, de pé, não festejaria também.

Mourinho não tinha qualquer médio defensivo. Herrera não o é – apesar de fazer as vezes de um –, Mata, Fellaini e Pogba também não. Os centrais eram somente dois: Blind (adaptado depois das lesões de Rojo e Bailly) e Chris Smalling, o capitão dos ingleses. Mas deitaria trancas à porta, o Manchester United. Marcus Rashford isolara-se na frente e tentava, como podia, ensaboar a cabeça aos defesas dos holandeses. Exaustou de tanto em vão tentar, saiu e entrou Anthony Martial para o seu lugar. Aos oitenta e sete minutos, quase Martial resolvia (mais ainda, definitivamente) a final. Isolou-se. E como ele é veloz. Seguiu para a área do Ajax. Tinha metros e metros de vantagem sobre Davinson Sánchez. Ficou cara a cara com Onana. Quando, por fim, rematou, a bola não estava lá mais. Sánchez, velocíssimo, roubara-lha.

O United venceu. Apesar de não se terem classificado via campeonato para a Liga dos Campeões, a vitória em Estocolmo deu aos ingleses um lugar entre os melhores da Europa na próxima época. Mourinho, com a vitória, tornou-se um dos treinadores com mais títulos europeus da história. Quatro títulos, como ele, apenas Ferguson, Paisley e Rocco têm. A velha raposa Trapattoni conta cinco. Assim que Damir Skomina apitou para o final, Mourinho voltou-se para a bancada, ergueu a mão no ar, estendeu o indicador mais alto, e assim ficou, apenas voltado, apenas de indicador estendido. Depois, sorriria. Os seus ergueram-no no ar — como só aos que vencem se ergue –, retornando Zé Mário “à manhã profunda” de Modiano. Outra vez, como da primeira vez.