Eu tinha dezassete anos, idade em que as férias de Verão tanto podem ser inesquecíveis como cruéis. Vinha de duas semanas de praia na Zambujeira do Mar, onde tinha tido por companhia as edições da poesia de Fernando Pessoa da Europa-América, e, de regresso ao meu bairro, à espera que também os meus amigos voltassem das férias, pouco tinha para fazer e instrumentos para iludir o aborrecimento eram quase nenhuns. Foi numa dessas tardes solitárias de final de Agosto ou início de Setembro que, com um anseio vago por uma qualquer maravilha sem nome, me dirigi à biblioteca municipal à procura de um livro que me livrasse do tédio estival, de um bilhete gratuito para longe daquela realidade.

Ao percorrer as estantes sem método ou objetivo fixo, encontrei não um livro, mas um título: cem anos de solidão. Inclinei a cabeça para o ler bem: Cem Anos de Solidão. Sobre que seria aquele livro? Que mundos traria no seu interior um livro cujo título era tão vasto e tão vago, como uma cúpula universal e invisível? Onde decorreria a ação? Em que período histórico? Desafiado por esses mistérios, levei-o para casa. Era uma quinta-feira, lembro-me, e se há dias que podemos afirmar com justeza que mudaram a nossa vida, esse foi um deles.

Feitiçaria caribenha

Pouco ou nada sabendo sobre García Márquez, ignorando tudo sobre o boom da literatura latino-americana, do realismo mágico conhecendo não o conceito mas a versão domesticada que víamos em certas telenovelas da Globo, lancei-me para as páginas do livro com a bênção da ignorância e regressei ao mundo real dias depois, talvez com o esplendor nas faces dos que recebem a revelação. A verdade tinha-me sido revelada e, naquele tempo, não houve ninguém a quem eu não tivesse querido evangelizar porque a verdade era grande demais para que a guardasse para mim. Tinha de a levar aos outros, para que lessem e sentissem o mesmo.

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Capa da primeira edição de “Cem Anos de Solidão”

Como é que eu, leitor ingénuo, poderia imaginar que aquela experiência de leitura nada tinha de incomum, a não ser porque era minha, e que antes de mim, milhões de leitores em todo o mundo, dos mais experientes aos mais episódicos, dos mais eruditos aos mais impressionáveis, tinham sucumbido à feitiçaria caribenha das palavras de um tal Gabriel José García Márquez, à amálgama perfeita entre os factos narrados e a voz que os narrava, à euforia melancólica de assistir à criação de um mundo e à sua destruição paciente e metódica num desfilar de alegrias breves ensombrado pela certeza das mortes, das tragédias, das guerras, dos suicídios, dos ventos da história obstinados na sua missão de fustigar e expulsar da terra as estirpes condenadas a cem anos de solidão?

Muitos anos depois – esperem um pouco, vejam como hoje não há maneira de escrevermos estas palavras sem afivelar um sorriso, como se devêssemos a um homem não só aquelas palavras, mas o tempo, a memória e o direito de nos movermos pelos labirintos do passado, como se “muitos anos depois” fosse um “in illo tempore” moderno – muitos anos depois, dizia eu, encontrei um livro, outro, este de homenagem ao mago de Aracataca – Gaborio, Artes de Releer a Gabriel García Márquez, que reunia textos de escritores, académicos e jornalistas, como Jorge Carrión, Tomás Eloy Martínez ou Enrique Vila-Matas.

Em poucos parágrafos, o escritor mexicano Pedro Ángel Palou contava a frenética receção a Cem Anos de Solidão:

“O romance viu a luz do dia a 30 de maio de 1967, com um cheiro a consagração e a multidões, depois de o editor ter sabido criar o ambiente, a expetativa e o barulho adequados. O livro teve uma tiragem inicial de 5 mil exemplares, que foi logo aumentada para 8 mil. Quinze dias depois, a segunda edição já foi de 10 mil exemplares, que deixou a editora sem papel para satisfazer uma procura que crescia em resposta à voracidade leitora de todo um continente. Durante dois meses, a América Latina falava de “Cem Anos de Solidão”, mas não era possível comprar o livro porque não se encontrava nas livrarias. Quando em setembro chegou por fim a terceira edição, a desordem era total, o México pedia 20 mil exemplares, a Colômbia 10 mil, outros países pediam 10 mil, 5 mil, 3 mil. Em três anos o romance vendeu 600 mil exemplares e em oito anos, dois milhões […]”.

A grandeza e o rigor destes números lembra os próprios artifícios técnicos de García Márquez como contou na entrevista à Paris Review: “Por exemplo, se disser que há elefantes a voar pelo céu, as pessoas não vão acreditar em si. Mas se disser que há 425 elefantes a voar no céu, as pessoas provavelmente irão acreditar em si. Cem Anos de Solidão está cheio desse género de coisas.”

A mais recente edição em português de “Cem Anos de Solidão” (Dom Quixote)

Mas os números avassaladores e inauditos pouco nos dizem sobre a experiência de leitura de cada um desses indivíduos. Essa experiência, a tal que eu, como tantos outros como eu, julgava única, é relatada com minúcia e acerto pelo jornalista Dasso Saldívar, que depois de ler tudo o que García Márquez tinha escrito até então foi à procura da semente inicial, do começo de tudo, busca que depois daria origem a El Viaje a la Semilla, primeira biografia de Gabo. Mas na génese do fascínio estava a leitura de Cem Anos de Solidão: “Num quartinho isolado da casa da minha tia Maria, de teto baixo e inclinado, em que cheguei a pensar como se fosse o quarto intemporal de Melquíades, fechava-me à tarde a desfrutar minuto a minuto desses cem anos de maravilha e solidariedade.”

Semelhante fascínio é relatado pelo escritor venezuelano Federico Vegas, noutro texto do mesmo livro:

“[Hoje] é difícil imaginar um mundo em que poucos eleitos tinham pronunciado a frase: “cem anos de solidão.” Eu tinha dezassete anos e nunca tinha ouvido o nome de Gabriel García Márquez. O meu estado era idêntico ao dos espanhóis que, por volta de 1600, tiveram a sorte de pegar num livro de um tal Cervantes e inaugurar a legião que pela primeira vez enfrentava num combate eterno e singular Dom Quixote de la Mancha. Os restantes chegámos com a igreja cheia e a missa a meio, para partilhar um fascínio repleto de ressonâncias ancestrais. Li as primeiras linhas, virginal e inocente, mas não estulto. Desde o princípio, intuí que assistia a uma revelação capaz de operar uma reviravolta em pedaços generosos da minha vida. Hoje posso dar testemunho desta súbita conversão”, escreve Vegas.

E nas suas palavras de fundo religioso, de maravilhamento e rendição, encontro eu tanto do que foi a minha própria experiência de leitura, como encontrarão muitos outros leitores, transformando o que aparentemente é só uma experiência de leitura individual, numa experiência de vida tão intensa como a descoberta do amor, tão radical como o primeiro e longínquo embate com o pavor da morte.

Experiência religiosa

Apoteose do romance e, ao mesmo tempo, adeus à era do romance, como escreveu Milan Kundera, não é estranho que o efeito da leitura de Cem Anos de Solidão tenha algo da totalidade da experiência religiosa porque o próprio livro parece inebriado pela sua imaginação, foi escrito com “a inconfundível convicção da obra-prima”, como se tudo o que existisse fora do livro fosse fútil e descartável e só o que está no livro fosse real e necessário.

Nenhum outro livro da segunda metade do século XX alargou da mesma forma as possibilidades do romance, retirando-o do beco sem saída para onde o modernismo o encaminhara com o mergulho na consciência e dos caminhos espaventosos mas em última análise estéreis desbravados por essa máquina de nulificação a que se chamou “nouveau roman” (o historiador britânico Eric Hobsbawm chamou-lhe uma “habilidade”). Também nenhum outro livro esgotou da mesma forma as aparentes possibilidades do romance.

Um livro que, por artes da magia das palavras e da convicção do seu autor, se eleva aos céus e, da primeira vez que o lemos, nos deixa lá a pairar por tempo indeterminado até cairmos de novo neste mundo sem peixinhos de ouro, sem livros cifrados, sem fantasmas amarrados a árvores, sem invernos de quatro anos e sem homens que, por fim, compreendem o vazio da guerra. Um livro que é o começo e o fim. O Alfa e o Ómega.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor dos romances “As Primeiras Coisas” (vencedor do prémio José Saramago em 2015) e “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”.