Se, quando era um jovem estudante de artes plásticas, David Lynch tivesse ficado na Áustria, para onde tinha ganho uma bolsa de estudo de três anos, em vez de embirrar com um dos professores e voltar para os EUA ao fim de três semanas, talvez o David Lynch cineasta nunca tivesse existido e hoje só fosse celebrado o David Lynch pintor. É precisamente a esta faceta menos conhecida do grande público, do autor de “Veludo Azul” e “Mulholland Drive”, que é dedicado o documentário “David Lynch: The Art Life”, de Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergard-Holm. Estes foram já responsáveis, em 2007, por “Lynch (One)”, um outro trabalho documental sobre a rodagem de “Inland Empire”, o último filme de David Lynch até á data, onde se mostrava, pontualmente, Lynch a pintar e a fazer colagens e pequenas esculturas em casa.

[Veja o “trailer” de “David Lynch: The Art Life”]

Tal como se esquiva a falar sobre os seus filmes, e a adiantar explicações ou interpretações para os mais intrincados, David Lynch também se fecha em copas sobre os seus quadros (que contemplam cenas, atmosferas, figuras e motivos surreais, bizarros, inquietantes e carregados de ameaça ou medo, e onde já encontramos o seu cinema em potência). Assim, o filme é uma longa entrevista onde o realizador, entre duas cigarradas (Lynch fuma como uma chaminé) e o trabalho num quadro, no estúdio da sua casa em Los Angeles, fala da infância, dos tempos de estudante, quando queria levar a “vida de artista” do título original (“beber café, fumar cigarros e pintar, e talvez apareçam algumas miúdas”), da sua dívida de gratidão ao pintor Bushnell Keeler, de como se começou a interessar por cinema (viu um quadro que tinha pintado “mexer-se de repente”) e de quando, já casado, pai de família e sem cheta, ganhou uma bolsa para estudar cinema em Los Angeles, e rodou “Eraserhead”, a primeira longa-metragem, nas instalações da escola.

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[Veja uma sequência do filme]

Lynch teve uma infância saída de um livro de Norman Rockwell, numa família feliz, estável e afluente, com pais carinhosos e compreensivos – a mãe, consciente do talento do filho, nunca lhe deu livros de pintar, por achar que lhe restringiriam a criatividade — entrecortada por raros momentos perturbantes. Um deles nunca mais foi esquecido pelo realizador, e parece saído de um dos seus filmes. Um belo dia, o pequeno David brincava junto de casa quando viu aparecer uma mulher loura, nua, com sangue na boca, que deambulou pela rua e depois desapareceu. Lynch fala ainda dos vários estados e cidades onde viveu, primeiro com a família e depois sozinho, com amigos e com a primeira mulher e a filha Jennifer, nutrindo uma especial aversão por Filadélfia, que por um lado descreve como triste, arrepiante e cheia de pessoas hediondas, mas pelo outro, como cheia de oportunidades para um jovem aspirante a artista como ele.

[Veja a entrevista com Jon Nguyen, um dos realizadores]

O filme é acompanhado por uma banda sonora ominosamente “lynchiana”, que se torna ainda mais sugestiva quando paira sobre os quadros. O cinema só aparece mesmo no final, quando Lynch decide fazer a agulha da pintura para as fitas, começa a fazer curtas-metragens experimentais que incluem sequências de animação e já expressam a “weirdness” peculiar que virá a caracterizar os seus filmes futuros, e mostra imagens da rodagem desse pesadelo passado dentro da cabeça de um louco que é “Eraserhead”, a propósito do qual David Thomson escreveu ser um filme que parecia anunciar para David Lynch uma carreira de cineasta vanguardista e conceptual. O que, a julgar por “Mulholland Drive”, “Inland Empire” e pela nova temporada de “Twin Peaks”, parece ter sucedido em pleno tardiamente.

[Veja um excerto de “Lynch (One)”]

Lynch é filmado também a pintar acompanhado da filha mais nova, a pequena Lula (à qual o documentário é dedicado), ou a fazer-lhe pequenas figuras em plasticina, com todo o zelo de um pai extremoso. O contraste entre estas cenas de pacato enlevo familiar e as visões malsãs dos seus quadros e as atmosferas de pesadelo dos seus filmes não podia ser maior. “David Lynch: The Art Life-A Vida Arte” estreia-se incluído na Operação David Lynch, no Cinema Ideal, de que fazem ainda parte as reposições do alucinatório, mesmerizante e indecifrável “Mulholland Drive” e da execrável “prequel” em cinema de “Twin Peaks”, “Twin-Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer”; de “Twin Peaks-The Missing Pieces”, composto por sequências cortadas na montagem daquele; e das curtas-metragens do realizador. Tudo vindo para o cinema à boleia da terceira temporada de “Twin Peaks” na televisão.