O bastonário da Ordem dos Médicos não tem dúvidas: a norma de execução orçamental publicada esta terça-feira que obriga os hospitais a cortarem em pelo menos 35% nos gastos com a contratação de médicos tarefeiros externos ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) vai deixar um sistema que já está deficitário em risco de rutura. “É óbvio que vai existir falta de médicos“, diz Miguel Guimarães, em declarações ao Observador.

É mais uma medida de austeridade e não sei se o SNS vai aguentar. Vamos correr mais um risco num serviço que já está deficitário. Atualmente já estamos a trabalhar em défice de capital humano. Não tenho dúvidas de que vai existir imensa dificuldade em assegurar alguns serviços cirúrgicos [pela dificuldade em contratar anestesistas, por exemplo] e mesmo algumas urgências hospitalares”, nota o responsável pela Ordem dos Médicos.

Muito crítico da decisão do Governo, Miguel Guimarães desvaloriza as declarações do ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, que, apesar da imposição destes cortes, garantiu que não vai existir rutura de médicos nos hospitais. “Não acredito no que diz o ministro. Quando houver rutura, porque vai haver rutura, o ministro vai dizer o contrário”, defende, antes de concluir: “As Finanças continuam a mandar na saúde dos portugueses.”

O ministro da Saúde já deu garantias de que, em breve, vão ser lançados os concursos que visam integrar ainda este ano mais 1.200 médicos no Saúde, entre profissionais de medicina geral e familiar e de especialidades hospitalares. Miguel Guimarães, no entanto, não acredita que seja suficiente para ultrapassar o défice que este corte de 35% vai representar e recupera alguns números: atualmente existem 29 a 27 mil médicos no SNS; desses, 9 mil médicos não são especialistas, ou seja, não podem assegurar sozinhos blocos operatórios ou serviços de urgência, por exemplo; e com a agravante de que as contratações que se fazem servem apenas para compensar as saídas naturais dos profissionais.

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A Ordem dos Médicos, continua Miguel Guimarães, não esconde, por isso, “a preocupação com este cenário e com as repercussões muito negativas que podem ter os nossos doentes” e exige saber “que medidas está a preparar o Ministério para compensar os hospitais”.

O Observador procurou uma resposta junto do gabinete de Adalberto Fernandes, mas o ministro da Saúde recusou-se a adiantar mais detalhes sobre o processo até à audição parlamentar de quarta-feira — o governante é esperado na Assembleia da República às 1o horas, para uma audição pedida pelos grupos parlamentares de PSD, Bloco de Esquerda e PCP.

Ao início da tarde desta terça-feira, à margem de uma cerimónia de assinatura de protocolos que decorreu em Lisboa, Adalberto Campos Fernandes acabou por assegurar que não haverá rutura de médicos nos hospitais pela imposição de um corte de 35% nos gastos com a contratação de médicos tarefeiros, considerando que é necessário travar pagamentos exorbitantes.

“O que foi dito foi que os hospitais têm de fazer um esforço para reduzir o que são muitas vezes os preços exorbitantes a que estão a pagar o trabalho à hora de médicos que não estão no quadro do SNS”, afirmou o governante.

Segundo o ministro, as Administrações Regionais de Saúde (ARS) e o Governo vão fazer o acompanhamento dos hospitais que possam ter problemas transitórios com esta medida. “Não seremos insensíveis a situações de transição, porque estas questões não se resolvem com o estalar dos dedos. Haverá no país oito a 10 hospitais com maiores dificuldades. O Governo e as ARS irão apoiar os hospitais para que não haja nenhum tipo de rutura nem nenhuma descontinuidade. Será feito o que tiver de ser feito para que não haja nenhum tipo de rutura”, declarou aos jornalistas, à margem de uma cerimónia de assinatura de protocolos que decorreu em Lisboa.

Campos Fernandes lembrou que os próprios sindicatos médicos têm “chamado a atenção para o desequilíbrio” do que é pago aos médicos externos ao SNS”, vincando a necessidade de “introduzir alguma racionalidade no trabalho à peça”. “Atingiram-se valores que são muitas vezes desproporcionados”, acrescentou Campos Fernandes. No ano passado, a despesa com os médicos tarefeiros rondou os 100 milhões de euros, sendo ainda superior à de 2015.

Adalberto Campos Fernandes recordou que, ao mesmo tempo, os médicos que trabalham no SNS passam a ter reposto 75% do pagamento do trabalho extraordinário e que até fim do ano passarão a receber os 100%, depois de verem as horas extras reduzidas a 50% desde 2009. Segundo o ministro, são os médicos do SNS que o Governo quer “acarinhar, trazer para o sistema e ter a trabalhar nos serviços de urgência”.

Ainda sobre o corte de 35% no que é pago aos médicos tarefeiros, Campos Fernandes afirmou o que os sindicatos médicos têm lembrado: “Que não seja um SNS de avençados, que derrete dinheiro para fora para contratos que são muitas vezes leoninos e que estão a prejudicar os médicos de carreira e que trabalham nos hospitais com o seu horário normal de trabalho”.

Presidente da Federação dos Médicos cauteloso

Mário Jorge Neves, presidente da Federação Nacional dos Médicos, não esconde a preocupação com os efeitos potencialmente negativos desta medida. Ainda que concorde com a necessidade de tornar mais justo o sistema — “há médicos tarefeiros a ganhar quatro a cinco vezes mais que os médicos integrados no SNS” –, a prioridade do Governo deve ser “garantir a articulação estreita entre hospitais e os centros de saúde circundantes” e “de rentabilizar os recursos humanos” já existentes, garantido os já prometidos concurso para colocação de profissionais e a respetiva “progressão na carreira” dos médicos.

“É preciso perceber se isto não é mera retórica para consumo da opinião pública e que plano tem o ministro para implementar esta medida. Não basta anunciar medidas abstratas. Como é que o ministro pretende resolver isto?”, pergunta Mário Jorge Neves, em declarações ao Observador.

PSD denuncia “austeridade encapotada” na Saúde

O vice-presidente da bancada do PSD Miguel Santos acredita que existe uma “austeridade encapotada” que faz “apertar o cinto” na saúde, apontando para um decreto orçamental que implica cortes de 35% nas contratações.

Estes cortes de 35% correspondem a um corte impositivo, uma vez que em termos de gestão este Governo não consegue introduzir medidas duradouras, estáveis, e estruturais, e vai ter repercussões negativas no acesso à saúde”, afirmou Miguel Santos, argumentando que se vive “uma austeridade encapotada. O que o Ministério da Saúde faz é apertar mais o cinto, introduzindo uma norma restritiva, que obriga a cortes de 35% na contratação na saúde”.

Para Miguel Santos, esta norma é só mais um reflexo da degradação que está em curso no SNS. “Os resultados na área da saúde têm-se degradado. Todos temos, infelizmente, acompanhado esses resultados com a dívida, mês a mês a crescer, os atrasos de pagamento a acontecerem, a faltarem medicamentos nos hospitais, a faltarem enfermeiros, a venderem dispositivos médicos à consignação”, defendeu o social-democrata.

“Infelizmente, os portugueses, mais uma vez, estão perante uma circunstância de poder regressar a um passado que julgávamos ultrapassado e de termos de pagar os erros desta governação ou através do acesso ou através da assunção desses custos”, acrescentou.

CDS exige esclarecimentos do ministro da Saúde

A vice-presidente do CDS-PP Cecília Meireles exigiu esclarecimentos do Ministério da Saúde sobre o corte de 35% em aquisição de serviços com profissionais e desafiou BE e PCP a assumirem uma posição.

“O CDS enviará ainda hoje [terça-feira] uma pergunta ao senhor ministro da Saúde, exigindo saber o óbvio: se esta medida foi preparada, se foram contratados profissionais de saúde para compensar estes cortes e como vai ser aplicada, designadamente, saber se é verdade que já houve cancelamento de cirurgias”, afirmou Cecília Meireles aos jornalistas, no parlamento.

Para a dirigente e deputada centrista é também “importante que todos os partidos deixem clara a sua posição”. “Os portugueses estão a ficar cansados de ver o PCP e o BE quando visitam hospitais muito preocupados e muito defensores do serviço público e do Estado Social mas depois, na hora da verdade, na hora de votar orçamentos, não acautelam que estes cortes não sejam possíveis”, argumentou.

Segundo Cecília Meireles, “para Governo, os hospitais são o alvo número um quando se fala em contas públicas”, e “quando se fala em gestão orçamental na saúde isso quer sempre dizer mais cortes, mais cativações e mais pagamentos em atraso”.

O Observador procurou um comentário junto do grupo parlamentar de Bloco de Esquerda e PCP, mas não foi possível obter uma resposta até à hora de publicação deste artigo.