É o tema do Orçamento do Estado para 2018. A quatro meses do prazo para fechar as negociações, há três vozes na “geringonça”: Governo, Bloco e PCP têm posições diferentes sobre o assunto. Esta quarta-feira, o ministro das Finanças quis dar um passo em frente ao revelar uma ponta do véu sobre o que vai acontecer ao imposto sobre os rendimentos (IRS), mas Bloco de Esquerda e PCP não gostaram do que ouviram. Catarina Martins, já tinha exigido uma despesa fiscal de 600 milhões de euros (em vez de 200 milhões) para aliviar o imposto. Fernando Rocha Andrade, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, tinha respondido ao Negócios e à Antena 1, que isso implicava “cortes na despesa”. Mas o líder parlamentar do Bloco, Pedro Filipe Soares, reagiu ao Observador dizendo que não aceita cortes na despesa e fala em aumentar mais impostos, como a derrama estadual para empresas. Para intensificar a confusão, os comunistas mantêm ao Observador que a solução tem de ser mais global e que são mais escalões, o dobro dos atuais, e mais alívio nas taxas. Há um nó para desatar.

Mas é cedo para falar sobre temas sensíveis que não estão ainda decididos. Por isso as declarações desta quarta-feira do ministro das Finanças não foram bem recebidas pelos parceiros parlamentares do Governo. Porque é preciso juntar ao IRS a discussão sobre o IRC e sobre toda a restante política fiscal. Nada se faz de forma isolada, diz o PCP. E só faz sentido mexer nas taxas de IRS se se mexer também nos escalões.

Pedro Filipe Soares. “Baixar o IRS não tem de implicar contrapartidas no corte da despesa”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Foi numa iniciativa do PS, quando respondia em direto às perguntas dos utilizadores das redes sociais esta quarta-feira, que Mário Centeno deu a notícia: o Governo está a desenhar uma medida que visa uma “melhoria fiscal” para os contribuintes que estão no intervalo de rendimentos do segundo escalão do IRS (entre 7.091 euros anuais e 20.261, onde estão mais de um milhão de agregados familiares). Significa isso que vai haver alteração dos escalões de IRS? Não necessariamente. Mário Centeno limitou-se a dizer que a prioridade é introduzir “mais justiça fiscal, mas que ao mesmo tempo se concentre exclusivamente nas famílias com menores rendimentos”. Que são as famílias que se encontram no segundo escalão de IRS, que tem “uma taxa marginal de imposto muito elevada”.

O primeiro-ministro, em entrevista à SIC na noite de quarta-feira, confirmou o que foi avançado de manhã por Mário Centeno, mas sem adiantar detalhes. Questionado sobre se a medida passa pelo desdobramento do segundo escalão, Costa respondeu: “Com certeza”. Mas logo de seguida afirmou que o Governo ainda não tem “a medida fechada”, mas que a intenção é que a alteração permita que “entre o primeiro e o segundo escalões possa haver uma redução de IRS para os rendimentos mais baixos”.

Como é que os parceiros parlamentares do PS olharam para este anúncio? O Bloco de Esquerda começou por congratular o facto de Mário Centeno ter falado não só em alívio fiscal, que pressupõe uma baixa da taxa, como também em maior justiça e progressividade, o que para uma fonte do Bloco contactada pelo Observador só quer dizer “desdobramento de escalões”. É, portanto, “um passo na direção certa”. Mas o facto de o ministro das Finanças ter dado como certa uma questão tão sensível que ainda está em cima da mesa para ser negociada não agradou aos bloquistas. “Não conclui as negociações, que ainda estão a decorrer”, disse ao Observador fonte daquele partido.

Centeno: Orçamento vai mexer no segundo escalão de IRS

Para o BE é preciso “mais progressividade e mais alívio fiscal para mais gente”, muito para lá do pouco que foi desvendado pelo ministro. Certo é que, embora o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, diga que para baixar dessa forma o IRS é preciso cortes na na despesa, o BE rejeita esse cenário. “Não é preciso compensar de maneira nenhuma. A baixa de IRS vale por si só e há margem orçamental suficiente para isso”, diz a mesma fonte.

O PCP, contudo, é mais minucioso. Embora, tal como o BE, diga que não é preciso qualquer corte na despesa para compensar a baixa de IRS, porque “todas as propostas de natureza fiscal que o PCP apresenta visam assegurar que o sistema permite ao Estado arrecadar as receitas de que precisa”, como explica ao Observador o líder parlamentar comunista, João Oliveira, o PCP defende que “a política fiscal não é só IRS nem o IRS é só escalões”.

Para os comunistas, é preciso olhar para a questão de forma “mais alargada”. Primeiro, porque a referência que o ministro faz à alteração da taxa marginal daquele segundo escalão “indicia apenas uma alteração à taxa” e é também preciso mexer nos escalões; depois, porque para mexer nas taxas marginais do segundo escalão “também tem que se mexer nas taxas dos outros escalões mais altos”; e depois porque é preciso mexer noutros aspetos de política fiscal para o Estado poder reduzir o IRS. É o caso das taxas liberatórias, diz João Oliveira, que beneficiam quem tem rendimentos de capital e património e que por isso devem ser eliminadas, ou o caso do aumento da derrama estadual em sede de IRC, para o qual o primeiro-ministro já mostrou alguma abertura, ou ainda o caso do aumento das deduções em sede de IRS, que também permitem reduzir a taxa marginal de cada escalão.

Tudo medidas que, na ótica dos comunistas, permitem aumentar a receita fiscal e, com isso, permitem ao Estado “perder” receita com os escalões de IRS. Mas ainda a negociação vai no adro.

Qual o ponto de partida do Bloco de Esquerda e PCP?

Os parceiros parlamentares dos socialistas foram para a mesa das negociações com posições de princípio diferentes. Ainda que todos concordem no essencial — é preciso imprimir maior alívio e progressividade nos escalões do IRS –, a receita para lá chegar é muito diferente.

A 16 de maio, na SIC, Catarina Martins deu o tiro de partida. A coordenadora do Bloco de Esquerda elegeu como prioridade para o próximo Orçamento um alívio fiscal de 600 milhões de euros no IRS, o triplo do valor inscrito pelo Governo no Programa de Estabilidade. A bloquista sugeriu mesmo que este alívio fiscal pode e deve ser repetido no Orçamento do Estado para 2019.

Achamos que é preciso uma despesa fiscal em criação de escalões próxima dos 600 milhões de euros, no mínimo, para este Orçamento, outro tanto no próximo, para podermos desfazer aquilo que foi a enorme injustiça criada por Vítor Gaspar”, notou Catarina Martins.

Dois dias depois, os comunistas aumentavam a parada e respondiam na mesma moeda a Catarina Martins. Também na SIC, João Oliveira, líder parlamentar do PCP, avançou com críticas à proposta do Bloco. “Não me parece vantajoso discutir a questão nesses termos. Não faz sentido fazer a discussão do IRS dizendo que há 200 ou 600 milhões para gastar em escalões, porque as questões do IRS não se resumem a isso. A questão é mais global”, afirmou o comunista.

Para o PCP, de resto, o caminho faz-se revertendo a reforma da Vítor Gaspar e indo mais longe: a criação de dez escalões de IRS, o dobro dos atuais e mais dois dos que existiam antes de 2012, na era pré-Vítor Gaspar. Mais: o partido liderado por Jerónimo de Sousa defende ainda o englobamento obrigatório de todas as categorias de rendimento — como dividendos, mais-valias ou as rendas — neste imposto, uma forma, defendem, de tornar mais justa a tributação.

Antes, em abril, os comunistas já tinham criticado os planos do Bloco, que nunca escondeu a abertura para rever de forma faseada os escalões do IRS. “Achamos que é um objetivo pouco ambicioso. Até porque, em termos da reposição de alguma justiça fiscal, em relação ao saque fiscal, só foi devolvido um quarto. Resta, portanto, a devolução de três quartos. É essa a luta que vamos travar, com certeza”, definiu Jerónimo de Sousa, pouco depois de se encontrar com Marcelo Rebelo de Sousa para discutir o Programa de Estabilidade e o Programa Nacional de Reformas.

Entre os dois parceiros de esquerda está o PS e, por maioria de razão, o Governo socialista. Em entrevista ao Observador, à margem das jornadas parlamentares do partido, João Galamba, deputado e porta-voz socialista, revelou-se otimista com o resultado das negociações, embora sem adiantar grandes detalhes.

“As negociações estão em curso, o importante é que haja uma redução significativa da carga fiscal e penso ser possível, como já foi possível no passado, encontrar um compromisso entre pretensões mais conservadoras do PS e mais maximalistas do Bloco e do PCP. Tenho a certeza que chegaremos a um compromisso razoável, que agrade a todas as partes”, explicou o socialista. Será a meio caminho, portanto? “Como sempre tem sido. Quando há partidos com posições distintas, o compromisso faz-se sempre a meio caminho”, respondeu João Galamba.

Esta quarta-feira, no entanto, Mário Centeno parece ter dado um passo em frente na discussão ao admitir a criação de um escalão intermédio entre o primeiro e segundo. A que custo? É essa a pergunta de um milhão de euros.

Falando num plano teórico e comentado exclusivamente a proposta do Bloco — um alívio fiscal de 600 milhões de euros — o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, deixou claro que uma medida dessa natureza “implica implica cortes na despesa”. Uma ideia que o Bloco já recusou.

Em entrevista ao Observador, Pedro Filipe Soares, líder parlamentar bloquista, foi perentório: “Para baixar o IRS não tem de haver qualquer contrapartida ao nível de cortes na despesa. Isso vai contra a coerência daquilo que defendemos. Se for preciso alterar alguma coisa na estrutura do Estado, então que seja por uma maior eficiência no lado da receita. Um exemplo disso pode ser a derrama estadual, que ainda não aumentou. Um aumento da derrama estadual [sede de IRC] pode trazer receita que compense a baixa do IRS. Não deve é haver cortes em lado nenhum, não deve ser nesses termos que se faz a negociação”. Resta saber o que fará o Governo.

Bloquistas e comunistas: duas formas de estar nas negociações

As negociações sobre a revisão dos escalões do IRS (e a discussão do Orçamento do Estado para 2018) são complexas e ganham especial importância em ano de autárquicas — ainda que ninguém queira assumir abertamente que os dois dossiês estão relacionados. A meses da corrida às urnas, todos os trunfos contam — e todos os trunfos vão ser jogados com cautela.

E aqui entram as diferenças entre Bloco de Esquerda e PCP. Na mesma entrevista à SIC, Catarina Martins deixou claro que os bloquistas estavam dispostos a fechar as grandes linhas orientadoras do Orçamento do Estado para 2018 ainda antes do verão. Dois dias depois, João Oliveira punha um travão às pretensões dos bloquistas: o Orçamento tem o seu calendário próprio, haja ou não eleições autárquicas.

“É uma impossibilidade prática, não sabemos como está a execução orçamental, a arrecadação de receita. E temos que ter segurança na discussão e nas soluções. O Orçamento tem prazos próprios e as eleições autárquicas não têm que condicionar o Orçamento”, rematou o líder parlamentar comunista.

Como explicava aqui o Observador, no país dos números maravilha de António Costa nem tudo são rosas. Os comunistas querem chegar à corrida eleitoral não como um negociador domesticado, mas como uma voz insubmissa. E precisa de capital e trunfos políticos para encarnar esse papel. A revisão dos escalões do IRS poderá ser um desses trunfos.

António Costa no país dos números maravilha. Será tudo assim tão bom?