O João queria festa. A Mariana também. São bonitos, eles, se os virem pelo Primavera Sound atirem-lhes um olá, não tenham vergonha. Estão no festival porque sim. Nenhum nome em cartaz os levou a comprar bilhete, mas depois é o de sempre: isto eu já sabia que era bom, aquilo não fazia ideia mas ainda bem que vim, a minha bifana é melhor que a tua carne argentina e no fim vamos andando que amanhã há mais. Não estiveram sempre de acordo mas ninguém se chateou. O hip hop saiu a ganhar, a electrónica fez o que tinha a fazer, Miguel foi um mestre da sedução e houve algum romance pelo ar. No fim, ir para casa de barriga cheia vale ouro. Que sorte, a destes dois.

João sabe, João esteve lá e viu quando os Run the Jewels fizeram um assalto-mestre que deixou quase todos sem trocos para os mambos que se seguiram. Um hip hop que gerou tanto espanto como loucura, tanta admiração como SMS da categoria de “nossa, quanta revolta”. Killer Mike e EL-P, nomes de guerra para batalhas de bom coração. A América não aguenta isto, até o mundo nos parece pequeno demais para isto, agora que avaliamos o caso. Mas ficaram na história deste 2017. Outra vez: ficaram na história.

Já Mariana bailou, tirou fotos, disse “sim senhor, este rapaz tem graça” e lembrou-se de Prince quando o falsete chegou e a pirueta ganhou espaço. Miguel de primeiro nome, Pimentel de apelido, que não é artístico mas ajuda a completar esta frase. É um sexymotherfucker que sabe bem qual é o segredo do R&B vencedor: suor, entrega, showbiz e atitude. Uma alegria, tudo isto, com a escola da soul e do rock quase a engarrafar azeite (ficam-se pelo quase) numa mistura rara e genial.

Elvis, cigarros e Whitney Houston no campo

Ao chegar ao Parque da Cidade, eram cinco da tarde e estava tudo numa relax, numa tranquila, numa boa. Samuel Úria espalhava charme e dava lições de amor. Primeiros ramos de flores na cabeça, primeiras toalhas estendidas na relva (sim, sim, isto é um festival) e o Elvis de Tondela cantava ao sol, de mangas arregaçadas. Primeiros copos e canções pela mesma ordem. João brindava, Mariana lembrava-se de como não há outro herói das canções em português que dance assim o róquenrole. Nenhum deles alguma vez foi do progrock, Úria também não. E mesmo que nem tudo tenha corrido bem, quem eram eles para recusar o encanto do artista?

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Primeira mudança de palco, sem pressas, sem correrias. Ter apenas dois palcos a funcionar tem destas coisas: tornam a quinta-feira dia santo. A nossa dupla agradeceu e desfilou, como fazem os frequentadores deste habitat natural. A seguir havia Cigarettes After Sex. Se fossem mesmo um cigarro depois do sexo, seriam um cigarro de arrependimento. Ou de insatisfação sem motivo aparente. Do tipo: “O que raio fui eu fazer?”. Ou então: “Eu achava que era isto que queria, mas agora que aqui cheguei, é só isto? E chega?”. Os quatro homens (não, a voz principal não é de uma mulher) vestidos de negro não estão ali para animar ninguém, mas sim para nos sacar a negritude da alma. Bem no meio dos vestidos, das flores e das toalhas aos quadrados que pintam o verde do parque. Fazem-no bem, com doçura e gentileza.

33 fotos

A Mariana já tinha uma toalha. O João provavelmente ainda nem sabia disso, mas sabia que era hora de jantar. Não é esquisito, perde o critério nos festivais menos na banda sonora. Calhou-lhe bem o buffet da hora calma. Rodrigo Leão e Scott Matthew, acompanhados por três músicos, foram recebidos por uma colina bem composta. É verdade que a capacidade do recinto aumentou de 25 mil para 30 mil pessoas. Mas também é verdade que, apesar de não haver mais música ao vivo àquela hora, há outras distrações no recinto para ocupar o tempo.

Matthew saía por vezes do palco para deixar o brilho com todos os outros. Depois entrava sorridente e humilde, como se fosse o convidado de uma banda e não a metade de um projeto que resultou no álbum Life is Long, lançado no ano passado. Mas teve direito a dois temas por conta própria: “Smile”, de Charlie Chaplin, e “I Wanna Dance With Somebody”, de Whitney Houston. Isso. Whitney Houston no Primavera Sound. “Esta toda a gente conhece”, começou por dizer. João conhecia. Mariana sabia de cor. A conquista foi fácil.

Já com os Arab Strap, os nosso protagonistas não estavam bem à vontade. A banda voltou à vida no ano passado, depois de 10 anos de silêncio, e Aidan Moffat disse que só queriam celebrar um importante legado da cena alternativa escocesa dos anos 1990. Celebrar “enquanto somos relativamente novos e não passamos muitas vergonhas em palco”. Bem dito, bem feito. Recordaram uma história bonita, Mariana e João mandaram um “OK” mas a relação ficou por aí. Com memórias para o futuro? Pouco provável.

Digitaliza-me isso, por favor

Avisámo-lo a ele, talvez não o tenhamos dito ela. Flying Lotus é um egoísta que fica com tudo para ele — porque só ele sabe ao que vai. Transformar o mundo em texturas, manipular sons, assimilá-los para os entregar de volta a quem os recebe de carne e osso. Produtor, DJ, inventor, feiticeiro das coisas menos orgânicas de que nos podemos lembrar, mas que consegue fazer da eletrónica uma estaladão bem dado. Não é propriamente para dançar, não é exatamente para chilar. João perdeu-se pelo bar. Mariana simplesmente perdeu-se. Nós passámos por lá para poder garantir: perderam coisa boa, meninos.

Os Justice gritaram D.A.N.C.E., D.A.N.C.E., D.A.N.C.E., toda a gente disse que sim, sim, sim senhores. Dancemos no mundo, amanhã ainda não é domingo e há muito pó para sacudir. Perdemos o rasto ao João e à Mariana mas eles, como bons frequentadores de danceterias da moda, estariam entre o povo que se deixava encantar pela dupla de franceses. Um clubbing a céu aberto, sem tempos mortos nem batidas murchas. Havia de ser bonito…

E no fim? Bom, quando chegámos ao Parque da Cidade, foi fácil perceber que o ambiente era o certo. No fim do primeiro dia continuamos com a mesma ideia. E os nosso amigos — que são verdadeiros, a internet não nos deixa mentir — vão pelo mesmo caminho. De João para Mariana, de Mariana para João, digam um ao outro que só vos fica bem: é a Primavera, Baby. Esta sexta há mais.