O comandante do regimento de Comandos é suspeito de ter falsificado documentos, desrespeitado as ordens de um general (crime de insubordinação) e de ter mantido ilegalmente detido (abuso de autoridade por prisão ilegal) um dos recrutas do curso 127, que levou Hugo Abreu e Dylan da Silva Araújo à morte. No despacho de acusação do processo em que se investigam as duas mortes, e a que o Observador teve acesso, a procuradora Cândida Vilar, que conduz a investigação em que 19 militares vão ser acusados de ofensas à integridade física e abuso de autoridade, mandou instaurar um processo autónomo ao coronel Dores Moreira.

Dores Moreira é o oficial com maiores responsabilidades na estrutura dos Comandos a ser atingido por este processo, até ao momento. E o facto de ser coronel permite-lhe evitar uma investigação por parte do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, onde correu o processo — mas não é o fim da linha. Durante a investigação aos Comandos, o Ministério Público e a Polícia Judiciária Militar foram reunindo os indícios que surgiram contra o comandante daquela unidade (em depoimentos, na inspeção do próprio Exército, nas contradições entre documentos) e a procuradora envia agora esses dados para a Relação de Lisboa, ao abrigo do artigo 109º do Código de Justiça Militar. No horizonte de Cândida Vilar está uma acusação contra o coronel, responsável máximo da tropa especial no quartel da Carregueira.

As suspeitas que recaem sobre Dores Moreira estão relacionadas com uma alegada falsificação do guião da Prova Zero que foi entregue aos militares do curso 127, com a ordem para prosseguir essa mesma prova — alegadamente contrariando uma ordem direta do Comandante das Forças Terrestres — e com a suposta retenção contra a vontade, durante mais de uma semana, de uma das praças que manifestou intenção de desistir do curso e que fugiu do quartel quando percebeu que o seu pedido não ia ter resposta e que teria de continuar a realizar os exercícios impostos aos militares integrados no curso de Comandos.

Ao Observador, o porta-voz do Exército recusa comentar decisões judiciais. “O Ministério Público está a fazer o trabalho que lhe compete e o Exército dará toda a colaboração que for solicitada pelas autoridades”, refere o tenente-coronel Vicente Pereira.

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Um guião feito à medida

Foi num artigo da Rádio Renascença que, pela primeira vez, se levantou o manto sobre a possibilidade de a Prova Zero do curso 127 — a mais dura fase do curso — ter sido conduzida com um guião preparado para um curso anterior. A divergência nos guiões tinha implicações na quantidade de água a distribuir pelos instruendos e nos militares sobre os quais recaíam responsabilidades pelo controlo da hidratação.

Durante a investigação, o Ministério Público requereu ao Exército que disponibilizasse os guiões do curso 127. O documento que chegou às mãos da procuradora Cândida Vilar e da equipa de investigadores da Polícia Judiciária Militar (PJM), liderada pelo major Vasco Brazão, tinha, à primeira vista, sido preparado especificamente a pensar no curso de Hugo Abreu e Dylan da Silva.

Esse guião estabelecia que cada instruendo deveria receber cinco cantis de água por dia de instrução — o equivalente a cerca de cinco litros de água — e que o diretor da Prova Zero, o tenente-coronel Mário Maia, podia “decidir aumentar a dotação diária” de água a distribuir, “bem como implementar outras medidas adicionais de hidratação”. Além disso, o médico tinha, de acordo com a versão do documento enviada aos investigadores, autoridade para ordenar a transferência de militares para unidades de saúde civis.

Mas a Inspeção Técnica Extraordinária que o Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME) mandou fazer ao curso de Comandos, depois das duas mortes, deixou claro que “o guião da Prova Zero do 127º curso de Comandos foi assinado após a realização da respetiva prova” e que um outro guião, o do curso 126, foi “impropriamente difundido” numa reunião de preparação da instrução fatal. O guião do 127 foi, aliás, “levado a despacho após o início da prova” e, portanto, depois de Abreu e Dylan Silva terem morrido. O documento previa mesmo alguns passos a cumprir na preparação do curso 127 que só foram formalizadas (isto é, assinadas por Dores Moreira) 50 dias depois da data da sua suposta concretização.

A versão original, usada pelos instrutores do curso 127, revelava alterações cirúrgicas em relação ao guião posterior. A quantidade máxima de água a distribuir era, afinal, de apenas três litros diários (como, aliás, era prática habitual em cursos anteriores). Esse controlo da hidratação constituía um “elemento da ação psicológica” sobre os instruendos, aplicado para “condicionar psicologicamente os formandos” e baseado na “doutrina” interna de que “a sede pode treinar-se”, refere o despacho do MP. Além disso, cabia aos instrutores — e não ao diretor da prova — manter “especial atenção” à hidratação dos recrutas do curso.

O MP acredita que a troca de documentos não foi casual.

Pretendeu-se, com as alterações acima descritas, fazer crer às autoridades judiciárias que, efetivamente, o consumo mínimo diário de água na Prova Zero do 127º curso era de cinco cantis” e não de três, refere a acusação da procuradora Cândida Vilar.

O diretor da prova ficava, também, com toda a responsabilidade sobre a falta de hidratação e o médico seria, também, o principal (se não o único) responsável pela decisão de não transferir os instruendos para um hospital.

Estas suspeitas levam o MP a propor um processo pelo crime de falsificação de documentos contra o comandante do regimento de Comandos, crime punido com “pena de prisão até três anos ou com pena de multa”, de acordo com o estabelecido no Código Penal.

Coronel ignora ordem de tenente-general

Os dois outros crimes são enquadrados pelo Código de Justiça Militar. Desde logo, o crime de insubordinação por desobediência. Horas depois de ter sido declarado o óbito de Hugo Abreu, na tenda de campanha do Campo de Tiro de Alcochete, reúne-se no local uma espécie de Estado-Maior dos Comandos. Prosseguir ou não prosseguir com a prova?, essa era a questão. Participaram na reunião, além do próprio coronel Dores Moreira, o tenente-general Faria Menezes (Comandante das Forças Terrestres — CFT), o coronel Siborro Reis, chefe de gabinete do CFT, o médico João Aniceto e o comandante da companhia de formação, Rui Monteiro.

Comandos. Comandante das Forças Terrestres acusado por médico de ignorar conselho para suspender curso

Ao MP, o médico João Aniceto (que substituiu por algumas horas Miguel Domingues no acompanhamento dos militares) garantiu ter deixado claro aos presentes que, na sua opinião profissional, “não existiam condições clínicas para prosseguirem as provas, face às condições climatéricas adversas.

Disse-lhes que estavam em ‘tolerância zero’, ou seja, além das recomendações expressas da obrigatoriedade de hidratar os instruendos, o que se faz em todos os cursos, disse-lhes que, caso algum dos instruendos manifestasse algum sintoma ou alteração do estado clínico, deveria ser de imediato encaminhado para a enfermaria”, garantiu João Aniceto na sua inquirição.

Faria Menezes diz ter optado pela solução preventiva sugerida pelo clínico. No testemunho que prestou por escrito ao Ministério Público — fazendo uso de uma prerrogativa que lhe é concedida pelo artigo 503.º do Código de Processo Civil –, o Comandante das Forças Terrestres (superior hierárquico de Dores Moreira) garante ter dados ordens para a suspensão da Prova Zero, o que levaria a uma imediata suspensão de todas as atividades, encurtando largamente esta fase de choque do curso. “Sem prejuízo da continuação do 127º curso de Comandos, decisão a avaliar posteriormente pelo comando do Exército, cancelei toda a instrução prevista em horário do dia seguinte (05.09.2016), resultando assim no encerramento definitivo da Prova Zero”, disse o tenente-general.

Mas as provas nunca foram suspensas. Além dos recrutas ouvidos durante a investigação, o próprio médico Miguel Domingues dá conta de que, na manhã de segunda-feira, 5 de setembro, menos de 12 horas depois de o óbito de Hugo Abreu ser declarado, os instrutores davam ordens para a realização de exercícios de marcha e outros. Nessa manhã, vários militares acabaram por ter de receber tratamentos médicos por estarem em estado de exaustão.

É essa continuação do curso que fundamenta a decisão do MP de lançar a suspeita do crime de insubordinação por desobediência contra Dores Moreira. Se as provas continuaram — e elas continuaram — e se o CFT tinha, como garantiu ao MP, ordenado a suspensão, o comandante do Regimento de Comandos ignorou uma ordem direta de um superior hierárquico. O coronel arrisca uma pena de um a quatro anos de prisão, quando o crime é praticado “em tempo de paz e em presença de militares reunidos”.

Militar esteve preso no quartel

O testemunho prestado por Nicolae Vreme aos responsáveis do processo foi determinante para a decisão do MP de incluir o crime de abuso de autoridade por prisão ilegal na lista de crimes pelos quais o coronel Dores Moreira é indiciado. O militar, instruendo de um dos grupos de praças do curso 127, tentava pela segunda vez conquistar a boina vermelha. Quis desistir, chegou a fugir da instrução e acabou “como se fosse um preso”, à espera de autorização para deixar de vez o curso.

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Vreme relatou a sua experiência aos dois inspetores da Polícia Judiciária Militar, que o ouviram, em Loulé, já depois de deixar o curso de Comandos. Essa vontade de desistir foi manifestada pelo instruendo logo na manhã de 4 de setembro, primeiro dia da Prova Zero. Disse-o ao 2º sargento Inácio, sem efeito. Tentou com o alferes Monteiro, que lhe disse que falaria com o capitão Monteiro. Mas nada. No dia seguinte insistiu que queria desistir da instrução e mandaram-no continuar… na instrução.

Fugiu do regimento da Carregueira dois dias depois de Hugo Abreu morrer. Chegou a Faro na madrugada do dia seguinte. Voltou ainda nesse dia — para evitar o estatuto de “desertor” e convicto de que haveria de desistir, mas cumprindo todos os passos. Acabou “como um preso” nas instalações da Carregueira, segundo o relato que fez à PJM da semana que se seguiu à fuga noturna.

O instruendo “foi colocado na caserna sete sozinho, não podia falar com ninguém. Era levado como se fosse um preso para as refeições, acompanhado por um graduado. No refeitório era colocado num canto sozinho e virado para a parede”, refere o relato que prestou aos inspetores. Passaram dois dias. Na sexta-feira foi colocado junto com os outros desistentes. Mas era como se continuasse isolado. Enquanto os outros militares podiam sair da caserna, a Vreme “era sempre dito que não podia sair, que voltasse para trás, para dentro da caserna”, lê-se no mesmo relato. Só na quinta-feira seguinte, mais de uma semana após o regresso, lhe foi dada guia de marcha.

Os episódios relatados por Nicolae Vreme, sobretudo a forma como foi mantido no regimento de Comandos sem autorização para abandonar o curso, levaram o MP a inscrever o crime de abuso de autoridade por prisão ilegal contra Dores Moreira. O MP entende que o comandante do regimento tinha conhecimento das condições em que o militar foi mantido e permitiu que a situação se prolongasse durante mais de uma semana. O Código de Justiça Militar prevê para este crime uma pena que vai dos dois aos oito anos de prisão.

A opção do MP pelos crimes a imputar a Dores Moreira foi ligeiramente diferente daquela que a PJM propunha. No relatório da investigação, a equipa liderada pelo major Vasco Brazão propunha que o coronel tivesse de responder pelos crimes de insubordinação por desobediência e falsificação de documentos — como o MP propôs — mas, também, por abuso de autoridade por ofensa à integridade física (no lugar de abuso de autoridade por prisão ilegal). Neste caso, a pena a aplicar poderia ser mais pesada: no limite, 12 anos de prisão.