Em 1989, Daniel Day-Lewis anunciou que se ia retirar dos palcos, após ter tido uma experiência emocional que o deixou perturbado. Estava a interpretar Hamlet no National Theatre em Londres, quando julgou ter visto o espectro do seu falecido pai, tal como o Príncipe da Dinamarca vê o do seu, o falecido rei, na peça. Nunca mais voltou ao teatro. No final dos anos 90, início do século XX, Day-Lewis voltou a desaparecer de cena, correndo que teria deixado o cinema de vez. Havia ido para Itália, aprender a fazer sapatos, na loja do mestre artesão florentino Stefano Bemer, até que Martin Scorsese o convenceu a voltar às telas em “Gangs de Nova Iorque” (2002). Acabado o filme, declarou numa entrevista que não tinha acontecido nada durante a rodagem que o tivesse feito dizer para consigo: “Mas porque é que eu não faço isto mais vezes?”.

Neste últimos 15 anos, Daniel Day-Lewis só fez cinco filmes. O mais recente, “Phantom Thread”, de Paul Thomas Anderson, passado no meio da moda na Londres dos anos 50, deverá ser o último, porque o actor, que fez 60 anos em Abril, acaba de anunciar, através da sua porta-voz, que encerrou a carreira, e tal como deixou o teatro em finais da década de 80, abandona agora o cinema. Se não for uma renúncia temporária, como aquela de há quase 20 anos, perdemos de vez o convívio com um dos mais brilhantes actores do nosso tempo, a quem chamaram o “Laurence Olivier da sua geração”, e o único a ganhar três Óscares (por “O Meu Pé Esquerdo”, de Jim Sheridan, em 1990, “Haverá Sangue”, em 2008 e “Lincoln”, em 2013). E foi precisamente Sir Laurence Olivier que escreveu na sua autobiografia que há dois tipos de actores, os que “usam a personagem como se fosse uma peça de roupa” e os que se “metamorfoseiam nela e ficam possuídos”.

Ator Daniel Day-Lewis vai deixar a representação

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Day-Lewis pertence a esta segunda categoria, e o seu método de representação tem tanto de artesanato, de lenta e cuidadosa construção exterior das personagens, do aspecto físico à voz (a exemplo, de novo, de Olivier), como de mergulho em profundidade nelas. Ao ponto de, durante a rodagem dos filmes, pedir que o tratem não pelo seu nome mas pelo de quem está a interpretar. Para concretizar esse processo de mutação total, Day-Lewis aprendeu boxe para fazer “O Boxeur”, andou de cadeira de rodas para interpretar Christ y Brown, o escritor e pintor atingido por uma paralisia cerebral em “O Meu Pé Esquerdo”, tornou-se fluente em checo para entrar em “A Insuportável Leveza do Ser”, ouviu discos de Eminem para melhor moldar a raiva do seu líder do submundo da Nova Iorque do século XIX em “Gangs de Nova Iorque”, e pediu que o tratassem sempre por “Senhor Presidente” ou “Sr. Lincoln” nas filmagens de “Lincoln”. A variedade e amplitude da sua galeria de personagens é impressionante, tal como o contraste extremo dos papéis e a capacidade de composição e elaboração dramática.

Esta intensidade simultaneamente racional e instintiva, física e intelectual, com que Daniel Day-Lewis enche os seus papéís, não tem deixado de levantar reservas e até alguma troça, inclusive no seu próprio meio profissional. Um cómico e compatriota chegou a dizer: “Se alguma vez o Daniel tiver que fazer o papel de Lázaro, vai ter uma experiência de quase-morte para a interpretação sair como ele quer”. Na hora da sua despedida do cinema, eis cinco dos melhores papéis de Daniel Day-Lewis, e um dos piores. Porque nem os gigantes deixam de pôr um pé em falso de vez em quando. Até ele, que quase sempre se deu ao luxo de fazer os filmes que lhe apeteciam, vários deles com os seus realizadores favoritos, e apenas 18 em 35 anos de carreira.

Os melhores…

“O Meu Pé Esquerdo”, de Jim Sheridan (1989) – O pintor e escritor irlandês Christie Brown, nascido numa família humilde com paralisia cerebral, usava o pé esquerdo, a única parte do corpo que conseguia controlar, para se manifestar artisticamente (e também para combate, se necessário). Daniel Day-Lewis interpreta-o nos antípodas do estereótipo do “deficiente heróico e exemplar” tão caro ao cinema de juntar por pontinhos, sublinhando a agressividade, a revolta e a frustração sentimental e sexual que eram parte integrante da personalidade de Brown, bem como o seu horror a qualquer tipo de manifestação de piedade.

“O Último dos Moicanos”, de Michael Mann (1992) – Esta sumptuosa e empolgante adaptação do clássico de Fenimore Cooper proporciona a Daniel Day-Lewis uma esplêndida interpretação de Hawkeye, o caçador branco criado pelos índios. É um papel de herói clássico da mais ancestral e pura cepa narrativa, como já se vão fazendo raros no cinema de hoje, e Day Lewis veste-o com uma extraordinária capacidade física e uma nobreza inata, tendo vivido em plena natureza durante vários meses antes do começo das filmagens, e aprendido a pescar, caçar e cultivar a terra como a personagem fazia.

“A Idade da Inocência”, de Martin Scorsese (1993) – Neste filme, o mais “viscontiano” de Martin Scorsese, Daniel Day-Lewis personifica Newland Archer, um jovem e requintado advogado da alta sociedade da Nova Iorque do século XIX, dividido entre a rapariga com quem vai casar, e a prima desta, uma mulher mais velha e separada do marido. A personagem como que aperfeiçoa aquela que o actor interpretou em 1985 em “Quarto com Vista para a Cidade”, de James Ivory, e é um modelo de expressão de uma mentalidade moldada, no comportamento e nos sentimentos, pela identidade social de uma classe e um tempo.

“Em Nome do Pai”, de Jim Sheridan (1993) – Trabalhando de novo com Jim Sheridan, Daniel Day-Lewis dá aqui mais uma das violentas guinadas dramáticas que caracterizam a sua carreira no cinema, voltando a interpretar uma personagem real, irlandesa e da classe trabalhadora, Gerry Conlon, que foi atirado para a cadeia nos anos 70 com o pai e dois outros compatriotas, injustamente acusados pelas autoridades inglesas de terem estado envolvidos num atentado do IRA. Day-Lewis faz evoluir Gerry de tipo indiferente e desclassificado para alguém consciente da sua dignidade de ser humano, e à altura do amor e da abnegação do pai.

“Haverá Sangue”, de Paul Thomas Anderson (2007) – Daniel Day-Lewis foi “roubar” a voz do realizador John Huston para a sua inesquecível personagem de “Haverá Sangue” , Daniel Plainview, um implacável milionário do petróleo nos EUA da viragem do século XIX para o século XX, um homem tão determinado em triunfar e manter tudo aquilo que conquistou, e que quanto mais protege o filho adoptivo, mais o afasta de si. É um papel todo ele em fúria, amargura, amoralidade e conflito interior, onde o actor volta a transfigurar-se física e fisionomicamente, concentrando toda a raiva, maldade e determinação da personagem na voz e no olhar.

… e o pior

“Nove”, de Rob Marshall (2009) – O realizador americano Rob Marshall (“Chicago”) teve a temeridade de fazer uma versão de “Fellini 8 e ½” sob a forma de musical, e Daniel Day-Lewis deve ter encarado como um desafio a possibilidade de suceder a Marcello Mastroianni – um actor radicalmente diferente de si em tudo, da personalidade à aproximação à representação e aos papéis — na figura do realizador egocêntrico e arrogante em crise criativa, e assombrado pelas várias mulheres da sua vida. O filme é um desastre embaraçoso para onde quer que se olhe, e Day-Lewis é tão convincente a fazer de italiano como Mastroianni seria a fazer, por exemplo, de aristocrata inglês.