Título: “O último salazarista – A outra face de Américo Thomaz”
Autor: Orlando Raimundo
Editora: D. Quixote
Páginas: 304

Devo avisar os desprevenidos leitores: numa das últimas páginas de O último salazarista A outra face de Américo Thomaz, O. Raimundo menciona-me. Cito: “Américo Thomaz regressou com a família a Portugal em Julho de 1978 (…). O primeiro Presidente da República eleito depois do 25 de Abril, muito pressionado pela direita salazarenta e saudosista, invocou “razões humanitárias” para autorizar o regresso do almirante aos 83 anos. Na frente desse combate pelo retorno do Presidente deposto posicionaram-se três jornais de extrema-direita, surgidos pouco tempo antes: os semanários Bandarra e A Rua, dirigidos respetivamente por Miguel Freitas da Costa e Manuel Maria Múrias ….” Falo por mim: o Bandarra não “surgiu pouco tempo antes” de 1978; teve uma existência fugacíssima no verão de 1974, dificilmente podendo “posicionar-se” em quaisquer “combates” vários anos depois. Para usar palavras do autor, num dos seus numerosos non sequitur supostamente irónicos: “Assim se faz (também) a história”.

O último salazarista – um título que tem o seu quê de wishful thinking, a julgar por algumas observações e lamentações do próprio autor – é o terceiro painel do que até agora constitui um tríptico de Orlando Raimundo sobre o Estado Novo. O primeiro foi A última dama do Estado Novo, baseado em parte em entrevistas com Ana Maria Caetano, de cuja “leitura” ou abuso a própria se queixou, sendo depois abundantemente maltratada pelo jornalista; o segundo, um António Ferro, apelidado, num subtítulo sensacionalista, de “inventor do salazarismo”.

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A concepção da historiografia como “ajuste de contas” preside a todos três, talvez com particular acrimónia na rancorosa e malévola ‘biografia’ de Ferro, em boa parte, como nos outros casos, gratuitamente caluniosa ou ridícula e que, finalmente, na sua sanha contra o biografado, demonstra demais e se transforma, como disse um comentador na altura da sua publicação, numa homenagem à contrecoeur.

No Prefácio de A última dama do Estado Novo O. Raimundo afiança que nos seus livros “não se trata de estruturar libelos”. Vejamos o que faz, não o que diz. O autor, nestes três livros, adoptou aquilo que, no seu António Ferro, definiu acusadoramente como sendo “as diretrizes do Secretário da Propaganda Nacional”. Tudo nestes livros se rege, de facto, por uma “clássica distinção entre bons e maus ou vítimas e carrascos”, numa retórica irreprimível de “maniqueísmo primário”. O desejado “ajuste de contas com o passado” transforma-se, vezes demais, num ajuste de contas com os factos, para não falar de pitorescas originalidades ou liberdades poéticas, se se quiser, como a de datar, em O último salazarista, o início da Primeira Guerra Mundial de 7 de Agosto de 1914, uma “sexta-feira negra” em que “as tropas do Czar Nicolau II invadem a Prússia Oriental (…) abrindo fogo sobre os soldados imperiais alemães”. Nessa data, os “soldados imperiais alemães” batiam-se já na Bélgica. O ataque russo deu-se, salvo erro, a 17. A Grande Guerra tivera o seu início, ou pretexto, no conflito entre a Áustria e a Sérvia (cujos exércitos já se combatiam em fins de Julho); a guerra foi formalmente declarada pela Alemanha a 1 de Agosto. Mas a lista de inexatidões é infindável.

No que tem de interpretação histórica, ou psicológica, O último salazarista não acrescenta nada de útil. Será preciso descobrir agora, com espanto e indignação, que os partidários do Estado Novo – defendiam o Estado Novo e a sua política? É principalmente feito de uma profusa adjetivação, comum, aliás, a todos estes três livros, no tom inquisitorial que, às vezes boçalmente, os carateriza. Para O. Raimundo, ao longo das dezenas de anos do “Regime”, só houve, por parte dos protagonistas, intenções cavilosas, interesses mesquinhos e fracassos. Abundam em todos estes verdadeiros “libelos”, os “renegados”, os “traidores”, os “fascistas” ou, no mínimo, os “mercenários” e os “yes men” – ou as “solidariedades aberrantes” (na questão ultramarina, que parece afinal não ter sido apenas um devaneio autocrático do ditador).

É uma terminologia lassa e errática: João Costa Leite (Lumbrales) é uma vez um “conservador monárquico”, outra um “nazi”, outra ainda um simples “germanófilo”. O general Botelho Moniz conspira descuidosamente com uma potência estrangeira (os Estados Unidos e a negregada CIA) contra o governo a que pertence e a política que jurou executar; o “traidor” é Thomaz, Presidente da República, que faz gorar a conspiração. Se a “balbúrdia sanguinolenta” da I República merece ser acusada de alguma coisa, aliás, não é certamente de se ter mostrado “excessivamente tolerante para com os seus inimigos”, uma repreensão que lhe faz O. Raimundo. Mas essa é uma queixa constante do autor: no livro sobre Marcello Caetano, O. Raimundo suspira: “nenhum dos filhos sofreu agressões, perseguições ou sevícias”. E encolhe os ombros: “São assim os portugueses.”

Haverá saudosistas (de que futuro?) que se consolem com o impotente “ajuste de contas com o passado” destes três livros. Não vamos regatear a ninguém esse prazer um tanto melancólico. Mas é preciso ter cuidado em acreditar em tudo o que neles se diz. Há erros flagrantes e incompreensíveis, uns que na mesma linha são desmentidos, como em António Ferro: “Apostado em conseguir a admissão na ONU [Salazar] prossegue a operação de cosmética (…) mudando o nome da polícia política de PVDE para PIDE – com a substituição da palavra “vigilância” pela palavra “defesa”’; ora a PVDE era a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, a PIDE, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado; outros que são simples tolices, como, em O último salazarista, a equiparação de Kaúlza de Arriaga a Himmler ou a informação de que o Valle de los Caídos, ao pé de Madrid, onde estão sepultadas umas dezenas milhares de mortos de todas as procedências e de ambos os lados da Guerra Civil, fundado, com mais ou menos sinceridade ou êxito, como Monumento da Reconciliação, é uma “obra erguida em memória dos soldados mouros mortos no decorrer da Guerra Civil ao serviço do franquismo”.

Disparates como, em António Ferro, quando se escreve que Garcia Viñolas, o “número 2 da propaganda franquista em Madrid vem a Lisboa em Janeiro de 1941” – e se explica, em nota: “O chefe da propaganda franquista em Madrid, e fundador da Falange, é o advogado José António Primo de Rivera, filho do general e antigo ditador Miguel Primo de Rivera.” (Jose Antonio Primo de Rivera foi fuzilado pelos partidários das “mais amplas liberdades” quando estava preso à ordem do governo republicano na Cadeia de Alicante, em 1936.)

Há episódios que roçam o delírio como, em A última dama, o de fazer Marcello Caetano sair “à rua eufórico”, “aplaudindo a ditadura militar que se instalou”, a que não falta um pormenor de efeito: “quando os cascos dos cavalos dos soldados bracarenses, comandados pelo General Gomes da Costa, pisam as calçadas de Lisboa, ao bater das dez da noite de 28 de Maio de 1926” (Gomes da Costa, estava em Braga a essas horas e levaria uns dias a chegar a Lisboa, onde Bernardino Machado presidia à República e não estava ainda instaurada qualquer ditadura militar – e Gomes da Costa quando veio, não veio a cavalo).

Há também gralhas, umas mais ou menos insignificantes (o Papa João XXIII tinha de apelido civil Roncalli, não Rocalli, Cohn-Bendit nunca se chamou Cohen Bendit) e algumas misteriosas (os enclaves portugueses de Dadrá e Nagar Aveli, na Índia, nunca foram “conclaves”, como se lhes chama mais do que uma vez). Já foi documentada e abundantemente ridicularizada ao tempo da publicação de “Mitos e falsificações do homem da propaganda da ditadura”, subtítulo involuntariamente irónico de António Ferro, a ideia de que este, por exemplo, além de “inventar” o salazarismo, “forjou” a tradição da “ostentação do ouro nas minhotas”. Nesse mesmo livro, o autor refere também o “depoimento” de um filho de Ferro que nunca existiu, Pedro; Pedro Ferro era irmão dele, como aliás se diz, correctamente, noutro passo. As fontes citadas incluem um “testemunho” de Fernando Ferro, esse, sim, filho de A. Ferro, que será a referência correcta.

São miudezas, talvez. Haveria coisas mais importantes a discutir. Têm sido tratadas, de resto, mais proficuamente, numa bibliografia sobre o Estado Novo que já é vasta. Mas tais miudezas são muitas. Estes três livros lembraram-me o famoso dito de Mary McCarthy sobre Lilian Hellman: “Every word she writes is a lie, including ‘and’ and ‘the'”. Seria um exagero dizer o mesmo destes livros – mas pode dizer-se que tem de se aplicar sempre à História segundo O. Raimundo o “prejuízo” da dúvida.