Três horas antes de escrever isto, aí pelas sete da manhã, começam a chegar os meus vizinhos que passam a noite nas zonas de dança. Acordo todos os dias com a chegada deles. À frente da minha tenda fica a da igreja, têm atividades o dia todo, mas a principal é oferecer copos com água. Fez muito sentido na quarta-feira com trinta graus, desde então estão menos quinze e a coisa só parece o trabalho mais infrutífero do mundo. Raramente alguém pega num copo. Por volta das sete aparece na tenda um rapaz perdido, eles perguntam se ele quer água. Ele diz que não, que está à procura da tenda, algures entre milhares. A malta da igreja (chamada de “god squad”) diz que nisso não o pode ajudar. E ele segue o seu caminho. Irónico isto de encontrar Deus ser mais fácil do que encontrar uma tenda.

“Oooh Jeremy Corbyn” ao som de “Seven Nation Army” dos The White Stripes. Era assim que hoje tinha dito a mim mesmo que iria começar, sem piadas e direto ao assunto. Mas coisas surgiram. É um cântico que se ouve desde quarta-feira. Ontem fez-se ouvir bem alto quando Corbyn subiu ao Pyramid entre Craig David e Run The Jewels. Há mais T-shirts alusivas a Corbyn por aqui do que a qualquer outra coisa.

Corbyn cancelou a sua vinda no ano passado após o referendo do Brexit e o decréscimo da sua popularidade nas sondagens. Este ano fazia sentido vir cá. Há algo de especial em estar num festival onde isto possa acontecer e onde o público reaja positivamente. Mesmo que seja histerismo coletivo, há muita força e diz muito sobre um país, o interesse das pessoas na política e a forma como isto tudo se liga. Só sentia o quão impossível seria isto acontecer em Portugal (o Avante não conta, porque isso faz parte). E fazê-lo falando para as pessoas ali — não necessariamente para os jovens, mas principalmente — foi algo de marcante. É daquelas coisas que só se vê na televisão. Not anymore.

Michael Eavis, o responsável pelo festival de Glastonbury, e Jeremy Corbyn (Foto: OLI SCARFF/AFP/Getty Images)

O dia arrancou com os Bootleg Beatles a tocarem o Sgt. Pepper’s… no Pyramid. Vestidos a rigor, um Lennon que já foi gordo, um Paul que parecia uma caricatura de rua, um George deprimido e um Ringo com uma prótese no nariz. Foi bom para acordar.

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Chegou a sobrinha e fui com ela para a Kidz Zone fazer tempo até Craig David. Esqueci-me que havia Thundercat no West Holts. Craig David no Pyramid tinha mais gente às três da tarde do que Radiohead no dia anterior. Sabem o truque de cortar a multidão pelas laterais? Não dava. Estava apinhado. Nem Craig David queria acreditar. Foi um espetáculo de entretenimento, sobretudo isso. Craig David fazia de DJ ou cantava por cima ou tocava temas seus. Até me custa dizer isto, mas deu um show.

Stage dive. Duas vezes, Katy, duas

Seguiram-se Run The Jewels, poderosíssimos depois de Corbyn. Ainda mais nos instantes em que DJ Shadow subiu ao palco (tocou noutro palco no sábado). Mas eu só pensava em Katy Perry. “Witness” não bate. E também não bate na maioria do público. Ela começou com canções do novo álbum e o espetáculo começou morno. Pelo meio diz “Glastonberry” em vez de “Glastonbury”.

Passadas quatro canções foi aos singles que toda a gente conhece. O ambiente aqueceu e tudo melhorou. Até tocou “Thinking Of You” do primeiro álbum. Acabou com “Roar”, claro. E com stage dive. Ninguém esperava esta. E muito menos que ela repetisse o ato logo a seguir. Ela disse que gostava destas coisas uns minutos antes. O público é que não acreditou.

Pausa para mudar de palco, jantar e não ver The National no Pyramid. Enquanto esperava meto conversa com um casal e ela diz-me que está chateada por não ver Solange porque o namorado quer ver Father John Misty. Ahh, suckers. Solange foi inesquecível. Do melhor que aconteceu em Glastonbury. E não preciso de ver os 99% que perdi para afirmar isto.

Houve ali um minuto em que me perdi: um diário de Glastonbury, parte 2

Por um parágrafo vamos esquecer o politicamente correto. Tem mesmo que ser. Solange é muito ativista no que diz a respeito de questões raciais e feministas. Há algo de irónico em estar a tocar para um público maioritariamente branco de classe média. Durante “F.U.B.U.” desce do palco e procura os 10 dos 30 não brancos que estão no festival (vá, 100, ou mil se contarmos com os músicos e o staff). Procura-os, canta com eles, eles estão emocionados. Os brancos tentam juntar-se mas ela ignora-os. Teve a sua piada.

O espetáculo de Solange é uma belíssima coreografia minimal. Todos vestidos de laranja, mexem-se em gestos simples e com uma classe descomunal. É lindo de se ver. Entrega tudo, a sua atitude, como se mexe, canta, faz lembrar uma Diana Ross em 2017. Sensual, direta, no ponto.

Quase sem perder a compostura de artista, porque é o dia do seu trigésimo terceiro aniversário. Está emocionada, diz que nos últimos cinco anos passou o aniversário no Reino Unido e sente-se grata por estar ali a tocar. O público retribui e canta-lhe os parabéns. Há uma alegria fenomenal no West Holts. E ela recompõe-se e regressa às canções de A Seat At The Table e True. Tentem ver se a BBC transmitiu. O concerto foi memorável. E ela também dizia “Glastonberry”.

Passeio e aguardo os The Jacksons no mesmo palco. Esperava um holograma de um mini Michael em palco. Não aconteceu. A coisa estava meio morta e fui para o Arcadia. É uma das muitas zonas de dança do festival (já lá vou). No Arcadia não há um palco, há uma aranha gigante metálica e o DJ toca numa cabine por baixo da cabeça do bicho. À meia-noite, entre sexta e domingo, há o Metamorphosis Show, o Acqua Matrix de Glastonbury.

Craig David (Foto: OLI SCARFF/AFP/Getty Images)

Trinta minutos de pirotecnia alucinantes. Envolve luz, fogo, pirotecnia, malta a disparar raios elétricos das mãos, muita coreografia e uma história foleira. É algo que tem de ser visto quando se está aqui. Impossível de descrever ou de fazer sentido fora do espírito do festival e as fotografias provavelmente só fazem tudo isto parecer ridículo. E é. Mas em bom.

São raves, senhores

Até agora conhecia algumas zonas de dança. Silver Hayes, entre os dois palcos principais, Arcadia, numa das extremidades, e The Glade, perto do Other Stage. Já tinha visto referências ao South East Corner. Indicações, placards electrónicos (os únicos em Glastonbury) com informações de como está a situação por lá. Por volta da uma todos diziam “busy”. Fui para lá. South East Corner tem mesmo nome de sítio para ravers. Àquela hora parecia que toda a gente estava a ir para lá.

Glastonbury tem destas coisas numa primeira vez: uma pessoa convence-se que já viu tudo em 3 dias e depois é surpreendido. O South East Corner é um festival dentro do festival. É uma área gigante, maior do que parece no mapa, composta por imensos palcos e bares com música de dança, divididos em várias partes. Estava tão cheio que só desfrutei com atenção quatro: Block 9, Common, Shangri-la e Unfairground. Há pelo menos mais uma, o Glasto Latino. É um mundo à parte de Glastonbury e um que não vale a pena visitar sóbrio. Gente sóbria não cabe ali e nem se consegue mexer. E apesar de isto ser uma pequena cidade, ainda fico impressionado como uma zona com aquela dimensão pode existir dentro do recinto.

O que raio faço eu aqui? Um diário de Glastonbury

Algumas notas antes de ir. Perto da The Glade existe uma tenda chamada Lovebullets. Desde quinta que, sempre que passo ali depois das duas da tarde, está à pinha. Toda a gente está feliz ali, ao passar fica a sensação de que é o sítio mais incrível do festival, apinhado de gente que não quer saber do que se está a passar no mundo. É bonito. Ainda não consegui entrar, mas adoraria enfiar-me ali.

Craig David? Pensem em Shaggy. Estou farto de ouvir Shaggy a tocar nos soundsystems dos bares. E sabem que mais? Hoje está cá. Não para um, mas dois concertos: à tarde no West Holts e de noite no Gully. Duas vezes. Shaggy. Ah, e há um Urban em Glastonbury. Mas como aqui é tudo uma questão de escala, chama-se Urban Sea.

Hoje já está a chover como deve ser. Ontem houve falso alarme e só vesti o poncho. Para um dia não vale a pena ir ao carro buscar as galochas, por isso os meus ténis vão ter que se aguentar com a lama.