Para se manterem saudáveis, os portugueses gastam muito mais do que a maioria dos europeus, sendo que os pobres continuam a ter maiores dificuldades de acesso aos cuidados de saúde do que as pessoas com uma situação económica mais confortável. Estas são as principais conclusões do Relatório de Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), “Viver em Tempos Incertos. Sustentabilidade e Equidade na Saúde”.

A análise dos indicadores de saúde da população portuguesa a partir do último relatório da OCDE, publicado em finais de 2016, mostra que o Sistema Nacional de Saúde representa 8,9% do PIB, um ponto abaixo da média da UE (9,9%), mais de dois pontos percentuais abaixo da Alemanha, Suécia e França, e evidencia que Portugal “iniciou uma tendência contrária à da maioria dos restantes países europeus, baixando ainda mais o peso atribuído à saúde”, refere o estudo que é apresentado esta quarta-feira.

O resultado disto “é que a percentagem do financiamento público dos cuidados de saúde prestados à população portuguesa (66,0%) tornou-se em 2014 das mais baixas da Europa a 28”. Em compensação, assistiu-se a um aumento da despesa out of pocket — que são os pagamentos diretos, do seu próprio bolso, que os portugueses fazem para terem acesso aos cuidados de saúde.

Na prática, “para se manterem saudáveis os portugueses gastam muito mais do seu próprio bolso que a maioria dos europeus”.

Depois da intervenção da troika passamos de um país com gastos na saúde acima da média da OCDE para um investimento que hoje em dia está abaixo. Foi um corte grande a agora há uma notória dificuldade em voltar a colocar o financiamento nesse nível”, disse José Aranda da Silva, porta-voz do OPSS e ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, ao Observador.

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Não só os portugueses gastam mais para se manterem saudáveis como aqueles que menos dinheiro têm mais dificuldades apresentam no acesso aos cuidados.

A evolução das desigualdades no acesso e utilização de cuidados de saúde em Portugal revelou que as barreiras permanecem relevantes e marcadas em termos socioeconómicos. Mais uma vez se verificou que os mais pobres continuam a ter menor utilização de consultas de especialidade, face a necessidades iguais, e que esta iniquidade está particularmente marcada em determinadas áreas como o acesso à saúde oral, à saúde mental e aos medicamentos”, lê-se nas primeiras linhas do documento.

Pessoas com menos rendimentos referem ter mais dificuldades de acesso a saúde

Quanto aos cuidados necessários não satisfeitos, que o estudo elege como um os indicadores fundamentais de equidade no acesso aos cuidados de saúde, Portugal fica à frente dos restantes países da OCDE. Quer seja por razões razões financeiras, geográficas ou pela existência de listas de espera.

Segundo esta análise, em Portugal cerca de 3,5% da população reportou a existência de necessidades não satisfeitas para consultas médicas, subindo esta percentagem para 7,2% em grupos com baixo rendimento. Na UE28, o valor referente a toda a população é de 3,6%, mas o grupo com menores rendimento apresenta uma percentagem de necessidades não satisfeitas de 6,4%. Em áreas específicas como na saúde oral ou mental, a situação é ainda mais preocupante.

Em Portugal, mais de 15,7% referem ter tido necessidade de tratamento sem que este lhe tenha sido facultado — um número que salta para os 28,8% nas classes menos privilegiadas. Isto face aos 5,5% e 10,4%, respetivamente, nos restantes países analisados.

A resolução deste problema passa necessariamente pela “contratação de mais pessoal”, defende José Aranda da Silva. As lacunas na contratação de mais profissionais para a saúde é “um problema que também choca com a falta de investimento e financiamento do Sistema Nacional de Saúde que vem sendo agravado pela saída de muitos enfermeiros para o estrangeiro e de médicos para o privado”, acrescenta. O que é certo para o ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos é que “sem profissionais motivados não existe Serviço Nacional de Saúde” e que “o Estado precisa de encontrar forma de oferecer melhores condições a estas pessoas para as motivar a permanecerem”.

Em relação à aquisição de medicamentos, Portugal é o país da Europa em que a população paga uma fatia maior pelos medicamentos, com as famílias a suportarem diretamente cerca de 40% do preço, segundo o relatório.

“Não há isenções [nos medicamentos] que permitam que o acesso melhore nas camadas de população que têm menos recursos. Existe, por exemplo, nas taxas moderadoras, mas na área dos medicamentos não existe”, referiu à agência Lusa, Aranda da Silva.

Como se acaba com o “ciclo ancestral entre pobreza e doença”?

“O ciclo de ligação entre a pobreza e a doença é dramático e é uma bola de neve: quanto mais pobre mais doente e quanto mais doente mais pobre”, resume José Aranda da Silva. O relatório fala mesmo de “ciclo ancestral entre pobreza e doença” e a análise dos académicos não desenha um cenário risonho para o nosso país.

Um estudo recente, citado nesta análise do OPSS, intitulado “Políticas Públicas em Saúde: 2011-2014”, menciona que o acesso está relacionado com a capacidade do SNS em prestar cuidados de saúde (recursos humanos e equipamentos); a proximidade geográfica dos serviços; o esforço financeiro pedido aos utentes (co-pagamentos); a adequabilidade dos serviços (qualidade e adequação às preferências dos utentes); e a aceitabilidade dos cuidados de acordo com as expectativas e necessidades dos utentes. As barreiras que poderão limitar o acesso são várias: insuficiência das estruturas de saúde e a sua desigual distribuição geográfica, os preços dos cuidados, ou a inadequação dos serviços às expectativas dos utentes.

Em relação à Europa, concluiu o estudo, “Portugal não sofre de maiores barreiras de acesso, mas estas barreiras estão mais marcadas do ponto de vista socioeconómico, em particular no que diz respeito às restrições financeiras”.

No que toca aos internamentos ou ao acesso a cuidados de saúde primários, Portugal aparece bem classificado em todos os espectros sociais. Já quanto a consultas de especialidade e de dentista estas são “significativamente mais utilizadas pelos grupos de rendimento mais altos”, refere o estudo. Ao mesmo tempo, a equidade no financiamento – ou seja, um contributo maior para o financiamento da saúde por quem tem mais dinheiro – parece ter melhorado ao longo do tempo.

A proporção de agregados familiares com despesas muito pesadas com a saúde (mais de 40% do orçamento do agregado) tem diminuído entre 1990 e 2010, de 7,8% para 2,1%, um decréscimo bastante acentuado.

Por outro lado, durante a crise económica, o peso da despesa privada aumentou de 26% para 28% entre 2010 e 2014. “Há cerca de dois milhões de portugueses a viverem com o ordenado mínimo ou menos e enquanto os funcionários públicos tem acesso à ADSE e as pessoas com mais posses podem contrair seguros de saúde que lhes garantam acesso a cuidados privados, a maioria das pessoas tem que confiar no sistema”, refere José Aranda da Silva.

20% dos doentes referenciados morrem antes de aceder aos cuidados paliativos

Ainda no âmbito do acesso aos cuidados, os autores do relatório destacam as “significativas” assimetrias regionais nos cuidados paliativos, apesar do aumento da cobertura nacional nos últimos quatro anos. Em 2016, por exemplo, existiam nove Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP) no Norte e apenas duas no Algarve, sendo que ainda havia nove distritos sem estas unidades: Aveiro, Braga, Castelo Branco, Guarda, Leiria, Portalegre, Santarém, Vila Real e Viseu.

A mesma tendência de evolução e de cobertura assimétricas regista-se relativamente às camas das Unidade de Cuidados Paliativos (UCP), sejam de agudos ou não agudos.Nos distritos de Aveiro, Leiria e Viana do Castelo não existe nenhuma UCP.

Um outro problema é a falta de uniformização do horário de funcionamento, existindo equipas que funcionam os sete dias da semana, com horários que variam de quatro a 12 horas por dia, como outras que só funcionam durante os dias úteis, com horário que varia entre 4 e 9 horas por dia, com aconselhamento telefónico ao fim-de-semana — o que dificulta a continuidade de cuidados.

O Observatório dos Sistemas de Saúde denuncia ainda os problemas com a admissão e identificação de casos com necessidade de internamento — as taxas de referenciação e de admissão são baixas, e cerca de 20% dos doentes referenciados não é admitido nos serviços, “pressupondo-se que falecem antes de a eles acederem”.

Das recomendações neste capítulo destacam-se a urgência de garantir um apoio a estes doentes 24 horas por dia, bem como a “intervenção urgente da tutela no combate às assimetrias regionais (em termos de acesso) e na dotação de todas as equipas dos recursos humanos de que carecem”. O investimento na formação e na informação aparecem também em destaque: “é decisiva a inclusão de uma unidade curricular dedicada aos cuidados paliativos nos planos curriculares dos cursos de saúde e o desenvolvimento de um sistema de informação que disponibilize dados fiáveis e compreensíveis”, refere o estudo.

SNS é mais eficiente pois faz mais com menos dinheiro

Os autores do relatório dedicam ainda um capítulo à velha questão da sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), lembrando que as incertezas sobre a sustentabilidade dos sistemas de saúde se estendem a outros países desenvolvidos e mesmo naqueles com democracias estáveis.

Sendo o direito à saúde um direito constitucional e o acesso tendencialmente gratuito, o peso do financiamento público “deveria ser muito elevado”. No entanto, “não só o esforço orçamental tem sido baixo levando ao subfinanciamento crónico do sector, como o peso da despesa direta privada (incluindo o pagamento das taxas moderadoras e dos cuidados não comparticipados) tem sido muito significativo”.

“É necessária uma política de orçamentação plurianual”, defende José Aranda da Silva, dando um exemplo: “se a meio do ano for aprovado um medicamente inovador que é preciso começar a administrar, o gestor de uma unidade hospitalar que já tenha recebido o financiamento pode não conseguir adquiri-lo por ter o orçamento ‘fechado’. Só com uma forma diferente de planeamento financeiro podemos assegurar que uma visão de médio prazo e combater o permanente subfinanciamento”.

Apesar do subfinanciamento crónico, o Observatório conclui que o SNS é eficiente. Isto porque o peso da despesa total no PIB (a parcela da riqueza criada afetada à saúde) não é significativamente divergente em relação à Europa a 15, mas a despesa per capita em saúde, em Portugal, é muito mais baixa. Apesar disso, os indicadores de saúde escolhidos para analisar esta “eficiência” — mortalidade evitável e mortalidade infantil — estão ambos muito próximos da média dos restantes países, com a mortalidade infantil em níveis particularmente baixos (2.9 por 100 mil habitantes em Portugal contra os 3.2 na Europa a 15).

Por isso, “é possível deduzir que o sistema português permite obter uma melhor relação entre a despesa efetuada e os resultados obtidos do que a média dos países da UE15, ou seja, é mais eficiente”.

As conclusões do estudo escrevem-se em jeito de recomendação. Em primeiro lugar, o OPSS aconselha o governo a desenvolver uma política de orçamentos e compromissos plurianuais e a repensar o modelo de financiamento dos hospitais, que “não se deve centrar exclusivamente em indicadores de produção mas dar maior relevância a indicadores de qualidade”. Lembrando os problemas com a falta de exercício físico e a elevada taxa de obesidade entre as nossos adolescentes, Aranda da Silva diz que “a educação é tudo” e “os comportamentos só mudam quando aprendemos e ensinamos”. A articulação das unidades hospitalares com o tecido económico regional, com as autarquias e com as escolas” é, para o coordenador, a “única forma de mudar de futuro”.