Algumas horas antes do concerto está tudo sentado à mesa. Jantar de final de tarde para haver tempo, descontração e concentração antes da entrada em palco. Gabriel Ferrandini, que iria apresentar o seu solo de bateria “Tudo Bumbo”, António Júlio Duarte, que fez o desenho de luz, Cristiano Nunes, responsável pelo desenho de som e Pedro Santos, programador. É um pouco escusado dizê-lo, mas convém: há zero nervosismo na mesa. Gabriel Ferrandini comporta-se como se não fosse, dali a um par de horas, apresentar um novo trabalho.

A composição começou a ter maior presença na sua carreira no ano passado, quando aceitou uma residência na Galeria Zé dos Bois — “Volúpia das Cinzas”, com Hernâni Faustino e Pedro Sousa. Ao longo do ano, por vários concertos, o trio foi mostrando esse work in progress. Revelou-se como um processo para Gabriel Ferrandini alargar – ainda mais – o seu campo de visão, permitindo-lhe explorar processos e técnicas no seu instrumento de eleição.

A composição surge como um passo natural numa carreira com mais de uma década. Tem feito parte de formações que têm marcado o jazz europeu nos últimos anos (RED Trio e Rodrigo Amado Motion Trio) e colaborado em vários projetos (Caveira ou o trio com Alex Zhang Hungtai e David Maranha) e músicos (Thurston Moore, Johan Berthling, Nate Wooley, Arthur Doyle), além de ser frequente trabalhar – e de haver material editado – com outros da sua geração, como o saxofonista Pedro Sousa (com quem tem uma ligação muito presente) ou o guitarrista Filipe Felizardo (Under The Volcano, editado em 2016 pela Labareda, é uma peça robusta de jazz, rock, ambient e drone).

As colaborações têm pavimentado o seu caminho. Parece inusitado dizer que têm “alargado horizontes”, porque Ferrandini torna as coisas tão naturais que tem que se assumir que os horizontes nasceram com ele. O que lhe permite é aprumar a técnica, intensificar o seu treino, encurtar – ou tornar inexistentes – as linguagens que vêm ao de cima quando está em palco tocar, seja a solo, como aconteceu esta quarta-feira, ou em qualquer um dos projetos em que está envolvido.

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A descontração que existia ao jantar sobe ao palco, aliada a uma extrema concentração e precisão. O modo como assinala o início com o gongo instalado atrás da bateria lança o mote para a intensidade dos cinquenta minutos seguintes. Na distância entre o palco e a plateia (cheia), este arranque parece uma marcação de território, uma forma de assinalar de como “Tudo Bumbo” vai além de um concerto de solo de bateria, é um trabalho de matéria, de som, de compasso, respiração e silêncio, através do recurso de várias peças de percussão e amplificação elétrica.

Horas antes falava-se à mesa sobre as leis de limitação de som nos clubes e bares de Lisboa e de como neste concerto o volume do som iria ser importante. A robustez e a força em “Tubo Bumbo” importou, é uma peça que exige ao ouvinte que use mais do que os seus ouvidos, que sinta também fisicamente o volume do modo como Gabriel Ferrandini toca. A força que aplica é consequente, a intenção não é de violência e, sim, de construção do seu som, é inata à sua forma de tocar e é notável como a ela se junta velocidade, precisão e flexibilidade. O espectador tem de ver, ouvir e sentir o impacto dos gestos de Ferrandini e também de ver, ouvir e sentir como numa questão de segundos percorre diferentes linguagens sem que isso seja uma questão. É intrínseco ao modo como Ferrandini trabalha e aprende o seu instrumento.

Após os cinquenta minutos de “Tubo Bumbo”, fica a sensação de que o que acabou de se ouvir é maior do que uma peça essencialmente construída em volta de percussão. É uma viagem riquíssima em volta da construção de diferentes narrativas e texturas que o som, a sua matéria, e só a matéria, podem ter. E é tudo muito orgânico, vivo, mutante. E fica também a ideia mais firme de que o músico atingiu um patamar em que já se pode falar da sua linguagem, o seu presente não é o conjunto do que bebeu na última década, mas do que existe em si e do que vê que pode fazer. Este passo na composição a solo convence de que o seu futuro (tem apenas trinta anos) não tem limites. O gongo no final não marcou o fim de “Tudo Bumbo”, pontuou o concerto como inesquecível para todos os que estiveram lá.