A meio da viagem sentimo-nos forçados a ligar a lanterna do smartphone, não vá a roupa sujar-se nas paredes húmidas ou a cabeça ir ao encontro do teto baixo, do qual parecem emergir pequenas estalactites. Nas Caves do Solar de São Domingos, na Bairrada, os corredores estreitos, ladeados de pilhas de garrafas, sucedem-se uns aos outros e os desníveis são presença habitual. Há uma aura de mistério associada ao pó espesso que cobre os espumantes de gerações mais velhas e ao eco da água a pingar, algures lá ao fundo. O bolor e os fungos que surgiram a convite do tempo ajudam a completar o cenário. A temperatura, essa, quer-se baixa: pode o calor de verão escaldar lá fora, mas entre paredes espessas e escuras há uma frescura inabalável.

O novo charme da Bairrada

Todos os espumantes aqui produzidos seguem as regras do método clássico — o que implica uma segunda fermentação em garrafa — e nenhum deles vê a luz do dia sem estagiar por um período mínimo de dois anos (à exceção dos rosés). O “Elípidio 80”, colheita de 2011, não é exceção. O espumante que resulta da combinação das castas Pinot Noir (50%) e Pinot Blanc (50%) dormiu durante quatro anos no interior das caves e só agora chega ao mercado para assinalar as oito décadas de vida de uma casa que anda há muito tempo a emprestar fama à região da Bairrada.

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Alexandrino Amorim, administrador, é quem nos guia pelos corredores dignos de uma longa metragem de suspense e quem nos leva a conhecer os armazéns, a adega, a linha de engarrafamento e a loja que residem no interior de uma casa que, à primeira vista, parece ser de habitação. A camada de tinta cor-de-rosa vista do exterior engana qualquer um, mas cá dentro há todo um património vínico que merece atenção. Ao todo são produzidos 15 espumantes (sem contar com vinho de mesa e aguardente), cujas uvas são colhidas em agosto. “Ao colhermos as uvas mais cedo conseguimos produzir um vinho de base espumante com alto teor de acidez e baixo teor alcoólico”, explica Alexandrino Amorim.

Ele e a mulher, Eugénia Freitas, são dois dos quatro nomes que representam as Caves do Solar de São Domingos, empresa que está na família do casal desde o início da década de 1970. Mas é preciso recuar a 1937, quando um tal de Elpídio Martins Semedo mandou escavar uma parte do subsolo da sua aldeia, Ferreiros, em Anadia. Foram precisos seis a oito anos para esculpir a terra à medida, mas também mão de obra esforçada e carros de bois. A ideia era abrir galerias subterrâneas que pudessem albergar milhares de garrafas de espumante. A temperatura debaixo de terra iria permitir que um património vínico se acumulasse ao longo do tempo e, atualmente, 2,5 milhões de espumantes repousam entre milhares de vinhos engarrafados e centenas de cascos recheados de aguardente.

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Elpídio pode ser, à partida, um nome difícil de soletrar, mas é, neste lugar, herança de um passado feliz. O “industrial da aldeia”, como Alexandre Amorim lhe chama, tinha várias serrações e achou por bem criar as caves nas suas instalações de Ferreiros, de maneira a apostar em espumantes de qualidade. Mas o que Elpídio começou, Lopo de Freitas continuou. Pai de Eugénia Freitas e sogro de Alexandrino Amorim, Lopo de Freitas é considerado um dos grandes impulsionadores do negócio, mas também o homem e patrão bom que faz quatro anos nos deixou. “O senhor Lopo foi um homem muito amigo dos trabalhadores, muito sério, honesto e justo”, recorda Alexandrino Amorim, deixando perceber que esta é uma casa que homenageia quem aqui acrescenta património.

Voltemos ao espumante. Anualmente são vendidas cerca de 800 mil garrafas, sendo que parte delas estão sujeitas à remuage manual. “Há garrafas em que deixamos ficar a pinta branca”, diz Alexandrino Amorim, apontando para o que parece ser uma dedada tingida a branco na base do recipiente de vidro. O administrador das caves está diante de uma pilha de espumantes, acondicionados debaixo do solo, e explica sucintamente que a pequena mancha serve para agilizar a remuage, processo que consiste na rotação lenta das garrafas invertidas e colocadas numa posição vertical — a rotação permite que as leveduras se acumulem no gargalo, para que depois possam ser extraídas. Nestas caves, o processo demora dois meses, com dois homens a rodar 70 mil garrafas por dia. “Se ficar alguma por rodar é coisa de se notar bem, porque isto parece um relógio”, garante Amorim.

Gravadas nas garrafas estão ainda a data e a hora do degorgement, essa etapa final na produção de espumantes que consiste em retirar simultaneamente a cápsula da garrafa e o depósito acumulado durante a remuage num só movimento. Por aqui são ainda produzidos vinhos de mesa, até porque em 2000 voltou-se a apostar em vinhas próprias, que correspondem a 20 hectares (cerca de 80% das uvas são compradas a produtores da região). Em 2006 foi construída uma nova adega, sendo que desde o início do novo milénio que o topo de gama da casa dá pelo nome Lopo de Freitas.

Na Bairrada produzem-se espumantes há coisa 130 anos, garante Alexandrino Amorim, homem que não arreda pé do legado que ajudou a construir. Há vontade em dar continuação a um sonho que já foi considerado arrojado q.b e que, a dar tudo certo, terá novo sangue em gerações futuras.