Uma cesariana teria sido muito mais simples. Mas, simplesmente, não dá – o que é pena! Porque depois de termos “suado as estopinhas”, conseguimos perceber muito melhor o quanto sofrem os designers das marcas, quando alguém chega ao pé deles com uma “ideia brilhante” para um novo modelo. Sucede que, entre o sonho e a respectiva materialização, há um longo caminho a percorrer.

No nosso caso, foram só 2.318 km. Ou melhor, seriam, se fossemos por estrada. Encurtámos a distância via aérea para aterrar no único Centro de Design da Mazda na Europa, localizado em Frankfurt, Alemanha. Onde descobrimos que, apesar da beleza de noções como pureza, simplicidade e harmonia, pôr tudo isso em traços que agradem à vista não é nada fácil. Pelo menos, para nós… Já vai perceber porquê.

Numa indústria em que os segredos fazem parte do negócio, e muitas das fases em que se desenvolve o processo criativo estão quase sempre fechadas a olhares externos, não tínhamos como recusar o desafio de integrar um (muito) restrito grupo, com apenas dois jornalistas portugueses, convidado para uma visita a um dos apenas três centros de design que a marca japonesa possui em todo o mundo – os outros dois encontram-se em Hiroshima, no Japão, e em Irvine, na Califórnia.

Na bagagem, levávamos a missão de desenhar um automóvel idealizado por nós – chamemos-lhe “o carro do Observador” –, mas que não beliscasse a filosofia estética que tantos prémios de design tem valido à Mazda. A marca nipónica denomina-a de “Kodo – A alma em movimento”, e acrescenta-lhe uns graus de dificuldade no interior, pois a concepção do habitáculo obedece necessariamente ao princípio “Jinba Ittai”, sinónimo de cavaleiro e o cavalo a funcionarem como um só. Por tudo isto, verdade seja escrita, ainda nem tínhamos começado e já estávamos de olhos em bico… Adaptados, portanto.

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Simplicidade, pureza, harmonia, beleza

Eis os princípios que, hoje em dia, norteiam todos os novos projectos da Mazda, sejam eles concebidos em Hiroshima, Irvine ou Frankfurt. Com o director de design do centro europeu, Kevin Rice, a explicar ao Observador que, “ao contrário do que acontece noutras marcas, na Mazda, tudo começa não numa folha de papel, a duas dimensões, mas tridimensionalmente, com o trabalho artesanal de modeladores”. Os quais, recorrendo ao barro, às mãos e a algumas ferramentas básicas “começam por criar não o esboço de um automóvel, mas uma interpretação muito própria de movimento, uma forma simples e harmoniosa, que depois de mostrada aos designers e já com o tipo de veículo pretendido já definido, começa então a sua transformação num automóvel”.

Ao fim ao cabo, o objectivo é “dar vida a uma forma”, explica o designer britânico. “Na Mazda, todos somos artistas, dos designers aos escultores, dos responsáveis pela escolha dos materiais à concepção das pinturas”, sublinha Kevin, realçando que “com a aplicação desta filosofia, é a própria qualidade do design que é elevada ao nível de arte”.

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Barro, papel, computador. Barro outra vez (e mais barro)

Concluída a interpretação da ideia de movimento, harmonia, simplicidade, por parte de modeladores como Hishimoto-san, artesão que está na Mazda desde 1997, chega então o momento da equipa multinacional de designers que hoje em dia trabalha nas instalações do Centro de Design Europeu da Mazda dar o seu contributo. Propondo, não raras vezes, mais de 100 interpretações próprias, passadas em papel e no computador, da escultura original. As quais, uma vez submetidas a um criterioso processo de escolha, no qual participa não só o centro europeu, mas também Hiroshima e Irvine, resultam numa selecção de “três ou quatro desenhos”. Que, por sua vez, passam à fase de modelação em barro, numa escala de ¼ e que, também eles avaliados, acabarão por dar origem a um modelo final. Também em barro, mas desta feita realizado em tamanho real por uma máquina. Uma vez finalizado e aprovado esse trabalho, só então se constrói um primeiro protótipo. “Embora também tudo possa voltar ao princípio, se não gostarmos do resultado final”, salienta Kevin Rice.

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Para o leitor ter uma ideia, só as linhas principais do exterior do CX-5, por exemplo, levaram três anos a ser apuradas, ainda antes de passarem aos esboços no papel. Daí que o novo SUV nipónico seja apontado pela marca como “o resultado mais perfeito até ao momento” da filosofia Kodo.

Cavalo e cavaleiro cavalgam o digital

Para a concepção do interior, nada de barro. Os primeiros passos dão-se logo recorrendo à tecnologia digital, num processo criativo que “pode levar cerca de dois meses”, afirma Rice. Seguindo-lhe, só então, a elaboração, “em espuma azul, de certos componentes do interior, para que se possa ter uma noção mais real das suas dimensões e volumetria”, a que se sucederá, uma vez cumprida a necessária aprovação, “a sua fabricação numa resina dura”. Este processo visa verificar, por exemplo, “a forma como são aplicados os revestimentos ou a união com outros componentes”, de modo a perceber mais facilmente se essas soluções podem mesmo ser transpostas para um automóvel.

Pode até nem parecer, mas nada aqui é ao acaso… Nem para o condutor, nem para o passageiro

Mas que história é esta de cavalo e cavaleiro no interior de um modelo? Felizmente, a ideia não é pôr os dois lá dentro (literalmente)! Aplicar a filosofia “Jinba Ittai” é, isso sim, atribuir um papel central ao condutor, com o automóvel a ser construído à sua volta. Com que intenção? Orientar todas as linhas no habitáculo para o volante, “criando assim na pessoa que se senta no cockpit o impulso para conduzir”, esclarece-nos o designer de interiores Masaya Suzuki. Mas nesta cavalgada para conquistar e fidelizar clientes, a Mazda tem mais truques na manga. Não é só o condutor que tem de se sentir qual cavaleiro em plena harmonia com a sua montada. Os designers também têm “rédea curta” no que aos ocupantes diz respeito. Como? Através daquilo que a marca designa como “sub-design” e que, na prática, passa por “evidenciar aquilo a que se quer que os ocupantes dêem atenção”, ao mesmo tempo que se procura “elevar a qualidade não só de todos os elementos, mas do ambiente em geral”.

Procurar o efeito “surpresa”

O nascimento de um automóvel não passa apenas pelos genes da marca. Depois, há também que ter a capacidade de surpreender, quando tudo parece que já foi inventado. Nomeadamente ao nível dos materiais. E este é outro “parto” difícil, que não só obriga a investigação, como implica a ida a “feiras, eventos de moda e mostras de estudantes de design”, sem esquecer “muita pesquisa na Internet e troca de informação com outros grupos de design”.

A cor deste Mazda MX-5 RF consegue ter, simultaneamente, um efeito translúcido e a capacidade de reflectir

Este esforço, recorda Kevin Rice, permitiu, por exemplo, conceber um novo material composto em madeira e plástico, cuja aplicação foi feita pela primeira vez no novo CX-5. Mas também as novas cores “Soul Red”, “Machine Grey” e “Soul Red Crystal”, disponíveis tanto no SUV como no MX-5 RF, conseguem ser mais atraentes por serem elaboradas através da já patenteada tecnologia Takumi-Nuri, que lhes permite combinar duas características à partida impossíveis de juntar – a tonalidade translúcida com a capacidade reflectora.

O “nosso” Kodo

Depois é que foram elas. Finda a teoria, chegou “o” momento de passar à prática. E como o leitor do Observador merece o melhor, tínhamos em mente uma shooting brake de inspiração crossover – o que mais poderia ser, num mercado onde o que mais se vende são carrinhas e SUV?) – que teria de encarnar os princípios básicos de design de qualquer Mazda. E, como se não bastasse, ainda ia passar pelo crivo do próprio Kevin Rice, assim como dos seus colaboradores mais próximos. Estão a imaginar os nervos?

Depois de um primeiro esforço em seguir as pisadas de Hishimoto-san com a espátula, a faca e a folha de metal, tivemos a vantagem de contar com o imprescindível contributo do designer que nos calhou em sorte, o jovem iraniano Sepeher Amirseyedi. O qual, depois de uma formação feita no Reino Unido, encontra-se há dois anos a ajudar a criar os Mazda do futuro, sendo por isso uma ajuda determinante no desenvolvimento da nossa shooting brake de inspiração crossover. À qual Sep, como também é conhecido, se esforçou por transmitir a verdadeira filosofia e linguagem de design Kodo.

No final, e quanto a uma possível passagem à produção, o desabafo do director do Centro de Design da Mazda na Europa dizia tudo: “A verdade é que é mais fácil pensar uma ‘shooting brake’, ainda para mais segundo a filosofia Kodo, que propriamente fazê-la…”

Fica a intenção… e o desenho. Obrigado, Sep!