Islândia (1-1), Áustria (0-0), Hungria (3-3). Croácia (1-0, a.p.). Polónia (0-0, 5-4 g.p.). País de Gales (2-0). França (1-0, a.p.). Foram sete adversários em sete jogos que nos colocaram, degrau a degrau, sete palmos acima da terra logo ali ao pé do céu. No dia 10 de julho, aquele pontapé que nos deixou no Éder – perdão, no Éden – e nos atirou para as ruas quase nos fez pensar que não haveria amanhã. Mas houve, diferente do normal.

O povo saiu à rua a 11 de julho para comemorar a revolução de um futebol português cansado de vitórias morais e que conseguiu triunfar se calhar quando menos se esperava. São as que sabem melhor. Para os que têm medo da dor ou não gostam por aí além desse estilo, foi uma tatuagem que ficou, em todos, mesmo sem se ver. Em todos, mesmo.

Em nós que, hoje, chegados à entrada principal da Cidade do Futebol, não nos cansámos de ver e rever de todos os ângulos aquela defesa de Patrício, aquela bola ao poste de Gignác, aquele golo do Éder. E, claro, em Fernando Santos, o engenheiro (com canudo e tudo, do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa) que explicou, na primeira pessoa, como se fizeram os alicerces para a casa de um Portugal campeão europeu.

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Criámos uma família. Além de um balneário forte, o que construímos, todos juntos, eu com a colaboração deles, foi isso: uma família. Há sempre um espírito de cabine forte, mas nem sempre se consegue construir um espírito tão forte e em família que consiga fazer com que os jogadores gostem de estar em estágio. Essa foi uma das etapas mais importantes para a vitória. Dou um exemplo: na final, há um momento em que o Anthony e o Eduardo, que não jogaram, estão às costas do Rui Patrício. Isso mostra essa família. Desde o princípio, antes de chegarmos, disse aos jogadores que, independentemente do que ia acontecendo na prova, haveria sempre um momento para se estar também com a nossa família. Essa liberdade dentro da responsabilidade marcou muito“, destaca o selecionador nacional, antes de dissecar mais alguns episódios que concretizam toda uma teoria na melhor prática.

Há sempre um espírito de cabine forte, mas nem sempre se consegue construir um espírito tão forte e em família que consiga fazer com que os jogadores gostem de estar em estágio (…) Desde o princípio, antes de chegarmos, disse aos jogadores que, independentemente do que ia acontecendo na prova, haveria sempre um momento para se estar também com a nossa família. Essa liberdade dentro da responsabilidade marcou muito.

Mas essa família foi construída antes, se fosse apenas em Marcoussis seria tarde demais. Houve jogadores que faziam parte e não estiveram no Europeu, houve outros que agora não foram à Taça das Confederações mas que foram sempre mandando mensagens de apoio e incentivo a quem lá estava. A prova provada de tudo isto que estou a dizer foi na Gala da Federação. Não nos víamos há muito tempo, mas sabia que os jogadores não gostam especialmente desse tipo de eventos. Estava na dúvida se vinham todos, mas uma hora antes estavam todos juntos aos abraços no hotel. Isso mostra tudo. Ou esta imagem do estágio que anda agora aí em que estão a jogar à bola e o Cigano atira de cabeça para um balde, que mistura que estiveram e que não estiveram no Europeu”.

Já agora, uma dúvida: o que mudou para em 2016 se falar tanto na parte mental, do grupo e do espírito quando, há uma ou duas décadas, era quase tudo resumido por nós a técnica e tática? Basicamente, tudo. “Falamos hoje de outra forma, há 20 anos a comunicação era diferente. Vamos pensar assim: a Alemanha sempre foi uma equipa pragmática e que ganhava, até havia aquela frase do ’11 contra 11 e no final ganha a Alemanha’. O que era isso? Era dar-se relevância a uma equipa forte, coesa. Acho que ainda se fala pouco de futebol, é pena que não haja tanta abertura porque isso é importante, os pontos de vista de cada um obrigam-nos a pensar. Agora, tirando o Brasil, que é um caso à parte, tivemos Itália, Alemanha e Espanha, que tinha uma cabine feita por dois clubes. Mas também só isso não chega. Quem ganha são sempre os jogadores dentro de campo, depois há o treinador, a estrutura. Com isso tudo, a probabilidade de ganhar é maior. No caso da Seleção, e como é diferente de estar nos clubes, que lhes pagam, tentamos fazer com que sintam bem uns com os outros para juntar isso ao orgulho de representar o país”, diz.

A hierarquia na liderança e um exemplo de capitão

Fernando Santos é um homem feliz, visivelmente bem com a vida. O tom bronzeado de quem já teve um pequeno descanso depois da Taça das Confederações deixa antever esse estado, a forma como recorda o triunfo no Europeu de 2016 confirma-o. Ele é o líder de um grupo que fez história. Que, lá dentro, tem outro líder histórico.

“Se Portugal teve duas lideranças? Há uma hierarquia também nas lideranças. A liderança sou eu, o Cristiano é um grande capitão e tem tido um papel fortíssimo. Mais do que pelas palavras, pelo exemplo que dá aos outros”, salienta. “Isso acaba por ser a melhor liderança. Alguns destes miúdos colecionavam cromos do Ronaldo em 2003, quando apareceu. Se calhar tinham aquela ideia que alguns que não conhecem têm, que seria inacessível, um craque; depois, quando chegam, encontram alguém diferente: um colega, sempre pronto para apoiar, que mostra uma disponibilidade incrível de entrega e de sacrifício. Só isso marca logo a liderança e não colide em nada com a liderança natural do treinador“.

“Este balneário, por si só, é líder. A coisa mais importante que se pode ter é quando os que não jogam ou que jogam menos minutos querem tanto ganhar como os outros. Isso aconteceu, em França. Quando todos os jogadores se sentem importantes, temos tudo. Volto a recordar os casos do Anthony e do Eduardo, que sabiam que só poderiam jogar se o Rui [Patrício] tivesse algum problema. Há quem se assuma mais, pelo carácter e forma de ser. Não quer dizer que todos tenhamos a mesma empatia com todos, mas forma-se uma família”, destaca.

Se Portugal teve duas lideranças? Há uma hierarquia também nas lideranças. A liderança sou eu, o Cristiano é um grande capitão e tem tido um papel fortíssimo. Mais do que pelas palavras, pelo exemplo que dá aos outros (…) Este balneário, por si só, é líder. A coisa mais importante que se pode ter é quando os que não jogam ou que jogam menos minutos querem tanto ganhar como os outros.

O momento de Éder, há um ano e agora

A certa altura, a conversa passa de forma inevitável por Éder. Há um ano falávamos do trabalho de Susana Torres, a sua “mental coach”, da luva branca que sacou da meia para celebrar, da improbabilidade dentro dos cenários possíveis de resolver a final de um Campeonato da Europa; hoje, há sempre aquela boa notícia do casamento, mas a parte desportiva não está famosa e a situação em França e no Lille não anda nada fácil.

“Não há ninguém em Portugal que não esteja feliz e grato ao Éder com aquele golo. Tenho uma relação pessoal com todos os jogadores. Essa parte humana toca-me muito, em termos emocionais. Quero o mesmo para os meus jogadores do que quero para os meus filhos, sempre o maior sucesso pessoal e profissional. Fico triste com a atual situação do Éder e quero que mude”, conta no resumo de um ano em que o avançado acabou por ficar também de fora da Taça das Confederações, por troca com André Silva.

O que pensei naqueles segundos antes do remate para golo? Nesses momentos sou mais adepto do que treinador… Lembro-me do Portugal-Alemanha na Suíça, em 2008, em que estava a fazer os comentários e nos últimos 15 minutos, quando estávamos a perder por 3-2, deixei de falar, só dizia ‘chuta’, ‘passa’. Quando era treinador do Amadora, fomos jogar à Madeira com o União um jogo muito importante para a manutenção. Meti em campo o João Peixe, para ver se aguentava o 0-0. A um ou dois minutos do final, agarrou na bola e foi até lá à frente. Eu só dizia ‘pára, pára’ mas ele continuou e foi marcar. Aí, já disse ‘grande golo’ e o meu adjunto, o Rosário, a dizer-me ‘Querias que ele parasse e agora é um grande golo?’. Na final do Europeu foi igual com o Éder. Ia entrar, estava a tentar explicar o que devia fazer tecnicamente mas ele não ouvia, só dizia ‘oh mister vou marcar, vou marcar’. E marcou!“, recorda, com um misto de boa disposição e orgulho na expressão.

Não há ninguém em Portugal que não esteja feliz e grato ao Éder com aquele golo. Tenho uma relação pessoal com todos os jogadores. Essa parte humana toca-me muito, em termos emocionais. Quero o mesmo para os meus jogadores do que quero para os meus filhos, sempre o maior sucesso pessoal e profissional. Fico triste com a atual situação do Éder e quero que mude (…) Na final, ia entrar, estava a tentar explicar o que devia fazer tecnicamente mas ele não ouvia, só dizia ‘oh mister vou marcar, vou marcar’. E marcou!

Qualquer campeão joga bem, pode é ser mais ou menos espetacular

Não foi de propósito, mas a conversa lá acabou por ir parar ao tema que hoje se trata de forma corrente como “a nota artística”. Foi quase como um daqueles cruzamentos em esforço que em vez de seguirem para a área seguem sem querer para a baliza e às vezes até dão golo. A certa altura, em Marcoussis, percebeu-se que Fernando Santos já não ia muito à bola com essa ladainha. E agora chuta mesmo para canto com uma ideia muito simples: não existem nem campeões da Europa, nem campeões do Mundo (e das Confederações) que não joguem bem.

As gerações vão chegando, sempre. Mas no dia em que pensarmos que o talento ganha só por si… esqueçam. Tem de haver equilíbrio, é assim que se ganha porque só o talento, sozinho, não chega. Não há ninguém que possa ser campeão da Europa e do Mundo sem jogar bem, isso a mim ninguém me convence. Mais ou menos espetacular, isso é outra coisa, mas jogar bem, tem de jogar.

“Todos os treinadores têm princípios em que acreditam e que tentam explorar, mas têm de habituar-se às características dos jogadores à disposição. Tivemos uma geração que era melhor, depois veio uma ainda melhor, depois vieram o Quaresma, o Ronaldo… As gerações vão chegando, sempre. Mas no dia em que pensarmos que o talento ganha só por si… esqueçam. Tem de haver equilíbrio, é assim que se ganha porque só o talento, sozinho, não chega. Não há ninguém que possa ser campeão da Europa e do Mundo sem jogar bem, isso a mim ninguém me convence. Mais ou menos espetacular, isso é outra coisa, mas jogar bem, tem de jogar. A Alemanha ganhou a Taça das Confederações porque joga bem, com aquele seu registo, umas vezes mais espetaculares do que outras. Foi dominada nas duas vezes que defrontou o Chile mas foi pragmática, não correu erros. Já o Chile cometeu o primeiro e sofreu golo. E no final quem é que ganhou a taça?”, comenta, numa resposta enquadrada com a chegada de outras promessas à equipa nacional como Bernardo Silva ou Gelson Martins.

Para mim houve dois jogos estratégicos soberbos no Europeu: Portugal-Croácia e Alemanha-Itália. A estratégia é bonita. Se é espetacular? Pode não ser. Mas a Alemanha jogou com a Itália com três centrais porque sabia o que era a potencialidade do adversário, sem perder a sua identidade. Mantendo esta linha, com o talento dos jogadores, Portugal pode continuar a acreditar que pode ganhar, que é diferente de sonhar que podemos ganhar. O caminho do sucesso é feito através da capacidade que temos de olhar ao espelho, ver a realidade que existe e perceber o que está bem e o que está menos bem para sermos melhores”, completa.

E agora, que futuro para Portugal e para a Seleção?

Fernando Santos diz-se hoje “naturalmente melhor treinador do que era há 20 anos”. Admite que a chegada à Seleção esteve tremida, porque tinha sido castigado com oito jogos e isso seria demasiado castrador para assumir a missão, mas encontrou em Fernando Gomes, presidente da Federação, alguém capaz de acreditar até ao fim que era possível reduzir o impedimento. Conseguiu. Chegou e, sem milagres, foi Midas. E o futuro?

“Nunca falo com os jogadores como se não tivessem ganho nada, chamo sim à razão a forma como ganharam. E o que fizemos para ganhar? Além deste excelente espírito, o acreditar que, jogando de uma determinada maneira, se podia ganhar. Como? Potenciando o que temos de bom, limitando ao máximo o que temos de menos bom. Conseguimos fazer isso bem no Europeu, eliminando o que era potencialmente forte no adversário apesar do nome que estivesse como adversário sem nunca abdicar de colocar em campo as nossas forças. No jogo com a Suíça, o único que perdemos, colocámos em campo o nosso talento mas esquecemo-nos que do outro lado estava um adversário que nos queria enganar. Sempre acreditei que, encontrado este equilíbrio e balanço, só muito dificilmente alguma equipa consegue ganhar a Portugal num jogo“, frisa, antes de realçar uma lógica relativamente fácil para chegar ao Mundial de 2018: “Ganhar os quatro encontros que faltam e que, pelas viagens e pela fase da época em que surgem, serão muito difíceis e terão de estar bem preparados”.

O que fizemos para ganhar? Além deste excelente espírito, o acreditar que, jogando de uma determinada maneira, se podia ganhar. Como? Potenciando o que temos de bom, limitando ao máximo o que temos de menos bom. Sempre acreditei que, encontrado este equilíbrio e balanço, só muito dificilmente alguma equipa consegue ganhar a Portugal num jogo.

“As bases estão de tal forma lançadas, a casa foi de tal maneira construída… O Quaresma tem aquela frase de que a casa está tão forte que não vai abaixo, uma frase que tem a ver com a parábola da casa construída na areia. Este grupo está de tal maneira consolidado que dificilmente se vai perder isso, mesmo com chegado de novos que serão agregados pelos que estão. Futuro? Continuar este trabalho que temos vindo a fazer. Por exemplo, a Cidade do Futebol. Andávamos sempre com a casa às costas e hoje temos o nosso espaço. Ter melhores condições de trabalho e de recrutamento, é isso. Assim, ficaremos mais próximos do sucesso. Depois, é lutar por vitórias. Lutar por vitórias não, ganhar. Porque quando se ganha mesmo, é muito mais giro”, remata.

Que assim seja em 2018, na Rússia. O Campeonato do Mundo é o próximo objetivo dos campeões da Europa.