“Mesmo que me esmaguem e transformem em pó, usarei as minhas cinzas para te abraçar.”

Pouco depois de ser condenado a cumprir 11 anos de prisão, o ativista Liu Xiaobo descobriu que apenas duas coisas desapareciam na correspondência que mantinha com a mulher, Liu Xia: os poemas de amor que escreviam um ao outro só ficaram registados na memória mútua e não escaparam à censura do governo chinês. Por que escolheram as autoridades interferir numa parte tão íntima e privada e, ao mesmo tempo, fechar os olhos aos discursos e ideias políticas que trocavam?

Tendo sido diagnosticado com um cancro terminal em maio, o vencedor do Nobel da Paz está no centro de um debate internacional que assume contornos geopolíticos: de um lado, temos os países ocidentais a clamar por “dignidade” e a pedir que o governo chinês autorize o recluso a receber tratamento no estrangeiro. Do outro, temos a China que se recusa a deixar que o resto do mundo comente os seus “assuntos internos”.

Liu Xia com o marido, já no hospital (Crédito: Twitter)

Estas são as primeiras imagens que vemos de Liu Xiaobo desde 2008, quando foi detido à força no seu apartamento.

Nesse apartamento estava a poeta Liu Xia, a companheira, defensora e, nos últimos anos, quem tem sofrido com a pressão das autoridades e com o mediatismo internacional.

Xia foi funcionária pública e uma poeta amadora dedicada. Conheceu Xiaobo na década de 80. Nessa altura, tanto Xia como Xiaobo estavam casados com outras pessoas, mas viam-se com frequência numa tertúlia intelectual que se reunia na casa de Xia.

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Massacre da Praça da Paz Celestial

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Os protestos da Praça da Paz Celestial de 1989 foram uma série de manifestações pacíficas que decorreram entre abril e junho de 1989.

Foram levadas a cabo por cerca de 5000 estudantes, vindos de vários grupos intelectuais e trabalhistas e visavam uma pacífica reforma política e económica.

O governo chinês decretou a lei marcial a 20 de maio e a 4 de junho respondeu com tanques e infantaria do exército.

A Cruz Vermelha chinesa aponta que cerca de 2600 pessoas terão morrido nos confrontos.

Liu Xiaobo é descrito na sua juventude por Yu Jie como um jovem “brilhante, intelectual e um mulherengo” que sempre encontrava tempo para a vida boémia, mesmo no decorrer dos grandes protestos de 1989, na Praça da Paz Celestial, onde foi detido.

O casamento de Xiaobo terminou nesse ano. O dela terminaria pouco depois. Ficaram juntos mal Xiaobo foi libertado.

“Encontrei toda a beleza do mundo nesta mulher.”

Mas ao dar uma mão a um ativista democrático na China, Xia uniu-se a um futuro incerto e perigoso. E ela sabia-o: nunca foi acusada de nenhum crime, nunca entrou num tribunal e nunca foi julgada mas “quando escolhes viver com uma pessoa assim, e mesmo que não queiras saber de política, a política vai querer saber de ti”, contou ao The Guardian.

“Quero casar com aquele inimigo da pátria!”

Era segunda-feira, 8 de dezembro de 2008. Passavam poucos minutos das 23h00 quando Liu Xia ouviu um bater forte na porta do seu apartamento. Um grupo de agentes da autoridade entraram pela casa dentro, com um mandado de captura com o nome de Xiaobo “acabado de imprimir”, explicou. “Suspeito do crime de _________“, lia-se.

A causa, veio-se a saber, estava num manifesto político assinado por mais de 300 intelectuais chineses – um deles era Xiaobo. O manifesto exigia uma reforma política pacífica, o fim da lei do partido único. Liu Xiaobo aceitou as culpas, com a esperança que o seu reconhecimento internacional o protegesse. Não aconteceu.

Um ano depois, na noite de Natal de 2009, Xiaobo foi condenado a cumprir 11 anos de prisão “por incitar à subversão”. A data não foi um acaso: foi convenientemente escolhida para minimizar o mediatismo internacional.

O pior estaria para vir quando, em 2010, Xiaobo recebeu o Nobel da Paz. A resposta por parte do governo chinês não poderia ter sido mais severa: Liu Xia foi colocada em prisão domiciliária sem acusação, a sua ligação telefónica foi desligada e o acesso à Internet foi cortado. Passou a ser vigiada pelas autoridades 24 horas por dia e só podia sair para visitar os pais e, de vez em quando, o marido.

“Acho que nem Kafka conseguia escrever algo tão inacreditável e absurdo”, disse em 2012.

Desde então, as más notícias vieram de mão dada: em 2014 Xia sofreu um ataque de coração. O pai morreu este ano e, em abril, soube da morte da mãe. Poucas semanas após essa notícia, vinha a revelação do estado de saúde de Xiaobo: foi-lhe diagnosticado um cancro terminal.

Numa sociedade sem consciência, liderada por um governo sem limites, quem sofre são os familiares dos que lutam – a possibilidade de serem separados a qualquer momento, a vigilância, a falta de privacidade, a pressão para que se tornem indiferentes, para que esqueçam”, disse Liu Xiaobo

Esta quarta-feira que Liu Xiaobo entrou em falência respiratória. A família, personificada em Xia, recusou-se a entubá-lo. A história de amor pode chegar ao fim, ficam as memórias.

editado por Filomena Martins